27.6.09

A MINHA CAMA

Quando te vi pela primeira vez, penso que não te vi. Ele convidou-te para apareceres lá em casa. Deve ter sido uma conversa agradável, daquelas conversas amenas e simpáticas, que não põem muita coisa em causa. Mas eu não me lembro de uma única palavra. Lembro-me que eras muito calmo. Que tinhas um olhar sereno e que mal olhavas para mim. Vocês falavam e eu, eu devia olhar o vago como é meu costume. Devia estar a pesquisar uma nova racha na parede branca ou a tentar contar os segundos que aquela mosca demora a levantar voo. Sou uma daquelas pessoas que levanta facilmente voo. Em criança quando não conseguia dormir, contava sapos às riscas e às bolinhas de todas as cores. Uma espécie de cruzamento de sapo com smarties. Quando de repente ele: “Não tens outro tipo de música, aqui em casa?” Aqui em casa, era minha e eu ouço aquilo que me apetece, que é o mesmo que ele faz na dele e me faz acordar às 8h da manha dentro de uma bola de espelhos em I Will Survive com We Are Family dos anos 70 a 80, numa década de gritos regada a Júlio Iglesias. Não percebo porque razão, ele ouve essas músicas, e não entendo certamente porque é que eu tenho de acordar com a Gloria Gaynor numa coreografia aos saltos, nos meus ouvidos. Quantas vezes, me imaginei a levantar da cama em direcção à aparelhagem e dar-lhe um murro certeiro mesmo em cima cd, para depois ir-me novamente para a cama. Isto depois de passar pelo w.c. e dizer “Ups, parece que a musica avariou, amor!” Se queria ouvir musica logo de manha então, pelo menos que pusesse algo mais budista ou yoga, quem tem muito mais a ver comigo. Quantas vezes, pensei que eu deveria era ter ficado na minha cama! A minha cama ali, numa solidão profunda e eu a adormecer quatro horas depois na cama de alguém que nem sequer boa noite me dizia. Mas uma vez mais, não disse nada e seleccionei no pc uma pasta qualquer para reproduzir aleatoriamente. Em toda a conversa, lembro-me de uma coisa, o teu peito. Eu observava com atenção o teu peito. Lembro-me de o ter imaginado derretido na minha cama e pensado que era um peito definido, e que bom deveria ser afundar-me nele e adormecer. Assim, a minha cama já não se ia sentir tão sozinha, à noite. Mas tu, mal me olhavas. Mas mesmo assim, percebeste tudo. Que eu estava com alguém que não me fazia feliz e isso transbordava pelos meus olhos como flechas a pedirem ajuda. Tiveste vontade de me salvar. Vinhas no teu alto, entroncado e elegante sobretudo preto comprido e na tua barba de três dias, salvavas-me daquele terrível monstro que me tinha aprisionado, e levavas-me para a minha cama. Eu não sabia, mas teres ficado ali, naquela desinteressante conversa, sem teres inventado à pressa um pretexto ou a morte de um parente qualquer para desapareceres, era o teu primeiro passo para me salvares. Ficaste ali sentado por minha causa. Não tinhas o menor interesse em estar a falar com ele. Mas como tinhas medo de não me voltar a ver, ficaste. Nunca vou esquecer essas palavras. Um dia alguém ficou, apenas por mim. Para estar comigo. Para olhares, sorrateiramente para mim, sem que ele percebesse. Aproveitando este, quem sabe, último e único momento para me poderes ver. Mas afinal que conversa era essa? De que falava ele sozinho, se afinal, nem tu o ouvias? Que queria ele de ti? Conseguiste escapar à conversa e a caminho da casa de banho, passaste pelo quarto. Olhaste a minha cama e pensaste: “Um dia, vou dormir ali!”. Devias ter-te deitado e nunca mais saído. Deitavas-te na minha cama e recusavas-te a sair. Como uma criança mimada que faz birra e esperneia que não se quer levantar. E assim éramos crianças novamente e como que por magia passavas a fazer parte da minha cama. Eu ia ao quarto e encontrava-te ali deitado. E sem perguntas, afundava-me no teu peito e adormecíamos em paz. Mas não te deitaste. Foste-te embora. Era noite. Quando te despediste olhaste para ele e disseste: “Depois telefona, um dia destes!” E eu senti-me tão invisível. E eu era de facto invisível. Nem sequer ali estive. Só depois compreendi porque fingias que não olhavas para mim. Por respeito. Porque não querias que ele se apercebesse de que te estavas a apaixonar por mim. Que cada vez que olhavas os meus olhos, te perdias ainda mais neles e te imaginavas deitado na minha cama. E houve um momento perdido no tempo e na conversa, em que tu, sem querer, deixaste escapar um olhar. Olhaste bem no fundo dos meus olhos e deixaste-me ver o fundo dos teus. Lembro-me desse olhar. Foi como sentir o fundo do mar. Eu vi o fundo do mar nos teus olhos. E tu sabias, que este, era apenas o primeiro passo para um dia te deitares na minha cama e eu adormecer no teu peito.

(ao meu chocolatinho)
27.09.2006

1 comentário:

vinte e dois disse...

Bastante intensa a tua narração! Ao ler, quase consegui visualizar cada movimento, cada olhar e cada som. Falaram os sentidos, parabéns pelo texto ;)