8.9.06

O VOO DO HOMEM RANHA, NUMA NOITE AREJADA




A Patrícia, que é a minha melhor amiga, pediu-me para dormir em minha casa no final da noite. Diz que se sente lindamente em minha casa e adoramos lá fazer aqueles jantares estupendos regados a vinho branco gelado. Mas esta noite parece que o conforto de minha casa será mais arejado e já que foi trocado por aquela esplanada fantástica que mostra o Douro no seu melhor. Voltei só a casa para ir buscar a carteira da Patrícia, que tinha ficado pendurada na cadeira, e lá fomos nós. Temos este vício de estar a apreciar o Douro enquanto bebemos licor de Moscatel e pomos em dia os últimos disparates que fizemos. Claro que tudo isto foi na era antes dos telemóveis, na altura em que as pessoas falavam olhos nos olhos e arranjavam sempre tempo para um jantar e uma gargalhada. E as melhores foram dadas em minha casa. Não me esqueço do jantar de aniversário que ela me preparou, com um bolo giríssimo feito pelas suas mãos, e que em cima tinha uma cama que dizia “Na cama com…” em alusão a um programa que a Alexandra Lencastre apresentava na altura. Lembro-me das noites de “Verdade ou Consequência” que terminavam sempre nas maiores gargalhadas, depois de passar por alguns desabafos, algumas lágrimas, muitas peripécias, e pela casa da partida sem receber dez euros. Claro que na altura ainda estávamos mesmo muito longe de ouvir falar em euros. Ouvíamo-nos falar a nós, e sempre olhos nos olhos. Porque a nossa amizade é real, não é daquelas amizades por telefone, em que se contarmos os minutos em que as pessoas estão fisicamente juntas, nem chega muitas vezes a 24h. Eu creio que nessa altura nunca falámos ao telefone. Eu nem sequer tinha telefone em casa. As poucas vezes que estava em casa a minha melhor amiga estava lá comigo, para que queria eu telefone? Mas foi quando chegámos a minha casa que percebi para que deveria querer um telefone. É que de facto, a noite tinha-se mesmo tornado muito arejada. Porque quando voltei a casa para ir buscar a carteira da Patrícia, esqueci-me das chaves dentro de casa. Não sei se desatámos a rir ou se ficámos mesmo muito tensos, mas sei que esse final de noite não estava assim previsto e não estava definitivamente a acontecer. Descemos a rua e fomos à cabine telefónica ligar aos Bombeiros. Com os nervos, tentei três vezes pedir o número nas informações, mas a chamada ia sempre a baixo, quando a voz aguda do outro lado me avisa “Esta chamada não é gratuita, tem de inserir uma moeda!” Eu inseria-lhe era uma valente par de estalos naquela cara a ver se começava a ter voz de gente. Lá liguei para os Bombeiros, que me advertiram que tinha de ir também um carro da Policia por regulamentos deles ou nem sei o quê, não percebi nada, só percebi que eram três da manhã e eu e a Patrícia estávamos na rua, à porta de minha casa a regelar e à espera dos bombeiros e da policia. Quando os Bombeiros chegaram, explicaram-me que iam tentar subir pela varanda, visto que eu deixava a porta da varanda sempre aberta. Mas para não assustar a vizinha do primeiro andar, que só por acaso era minha tia, e só por acaso estavamos chateados e não falávamos um como outro, era necessário que eu a fosse avisar que não, não era um ladrão, nem o super homem, nem o homem aranha a trepar pelas paredes, mas um bombeiro a tentar abrir-me a porta, já que eu me tinha esquecido das chaves em casa. A minha tia abriu-me a porta com cara de tês da manhã e com uns olhos que saltavam faísca. Acho que por ela todos os bombeiros deveriam estar muito ocupados a noite toda para que eu congelasse de frio na rua. Não, não se mostrou nada preocupada com a minha situação. Não, não me convidou para entrar. Simplesmente me disse “Está bem.” E deu-me com a porta na cara. Eu que não conseguia abrir a minha porta, e ela com a dela aberta fechou-ma, mesmo na minha cara. Irónico, não é? Mas afinal, dispensaram o homem aranha, porque um dos bombeiros teve a brilhante ideia de “arromba a porta” com um cartão género cartão magnético de Multibanco. Sim, porque já ninguém usa dinheiro, agora usa-se um cartão de plástico que serve para tudo. Ou para quase tudo, porque aos bombeiros não se pode pagar com Multibanco, de maneira que tivemos, eu e a Patrícia, de juntar os restantes tostões esquecidos ao fundo da minha carteira e da carteira dela que tinha ficado esquecida pendurada numa cadeira, e pagar aos bombeiros. E no fundo a culpa de tudo aquilo era da carteira dela, portanto era mais que justo que essa carteira inventasse moedas esquecidas para pagar o eu resgate que envolveu bombeiros e policia. Um verdadeiro triller policial. Já tudo estava pronto quando o bombeiro me explica que tínhamos de esperar pela polícia para confirmar tudo. “Normas de procedimento.” Eu queria lá saber das normas. Para mim não fazia sentido nenhum ficar à espera da policia, que é sempre a ultima a chegar, para chegar, ouvir o relato da noite com pormenores, excepto a parte de que não falava com a minha tia mas que a tive de a avisar da chegada do homem aranha, vê-los a acenar coma cabeça e partirem. Todo aquele aparato de polícia, bombeiros, a tia, o homem aranha, a voz aguda das informações, tudo resolvido com um simples passar de um cartão magnético. Às vezes tudo se resume a um simples cartão. E por vezes as soluções são bem mais simples do que imaginamos. Ele lá escreveu no bloquinho “tentativa de arrombamento” sem especificar o modo, eu assinei e lá me deu o papel e lá foram embora, levando com eles a policia e o homem aranha. Ali ficámos nós depois de uma noite bastante arejada, no conforto de minha casa sem perceber se toda aquela situação absurda tinha mesmo acontecido ou se tínhamos bebido demasiado Moscatel. Às vezes mais vale não tentar sequer perceber.