25.9.06

QUERIDO MUDEI A CASA




Hoje vamos ter uma conversa final. Cansei das tuas desculpas que te fazem fugir a toda a hora e que não te desculpam pela tua ausência. Telefono-te. Precisamos de conversar. Hoje. Estou a ir para Oliveira de Azeméis para um jantar. Quando voltares passa aqui em minha casa para falarmos, seja a que hora for. Mas não te espero no sofá azul. Não espero mais. Por ti, não espero mais. Vou para tua casa. Tens a porta fechada com a chave de segurança e só a chave que me deste não a abre. Mas o que tu não sabes, é que da última vez que fizemos amor, eu tirei-te uma das chaves de segurança e guardei-a comigo. Entro em tua casa. A árvore de Natal já não existe. Era uma coisa nossa que ainda estava por fazer. Íamos tirar fotografias e desmontá-la juntos. Não fizemos. Não existem fotografias dessa árvore desmontada só por ti. Só por ti? Percebo que a nossa relação acabou. Quando uma árvore de Natal já não existe, é porque uma relação acabou. É assim que se deve compreender. Lentamente e em silêncio descubro um rosto fotografado que não é o meu, colado no espelho da casa de banho, na parede da sala e numa das paredes do quarto que entretanto mudou de posição. Ou é a minha gravidade que se alterou ou ia jurar que a cama está do outro lado com um lençóis pendurados pelas paredes. Recuso-me a olhar para este espectáculo em forma de tenda de circo e entendo que esta já não é a cama ou fizemos amor pela primeira vez. Aliás, nem nunca foi. Nós fizemos amor pela primeira vez na secretaria do escritório. Encontro um diário. Leio. Não sei se me dá vontade de rir ou de vomitar mas náuseas sinto concerteza. São páginas escritas por ti e por essa fotografia colada no espelho da casa de banho. Um diário escrito pelos dois. Hoje vou dormir com o meu bebé. Que patético. O ser humano consegue ser tão patético quando está apaixonado. Principalmente quando mantém duas relações paralelas, uma no fim, outra no inicio. E principalmente quando a minha testa se parece com um estendal que vai do Porto a espinho. Claro que a palavra cornos é demasiado forte, mas eu vou ter força para esquecer todo este cenário. Telefono ao Paulo, que como é um verdadeiro amigo do peito, assim que ouve “Paulo!....” me diz: onde estas? Vou já para aí! Enquanto o espero vou partindo à descoberta dessa criatura colada no espelho da casa de banho. Ou melhor, já não está colada, porque eu já lhe rasguei a cara. Tem godés e pincéis no teu escritório. Ou melhor, tinha, porque eu já os parti. Deve pintar. Também deve ter pintado a preto, os símbolos chineses nos pratos que estavam a secar na varanda e que agora vejo do outro lado da rua partidos. Esses cds Oliver Shanti vão se dividir em 2, em 3 em 4. E as tuas camisas do armário precisam de uma abertura de alto a baixo nas costas. Não tenho tesoura, vai mesmo com os dentes. De roupa percebo eu. Vais adorar começar a usar camisas todas abertas nas costas. Ah! Essas velas são apenas decoração? Agora estão a arder. E aqueles pais de Natal? Parti-os e depois comi-os. Sabes bem que adoro chocolate e hoje quase ainda não comi nada e preciso de energia para a surpresa que te estou a preparar. Esta é a minha grande surpresa. Já que tens uma tenda de circo montada no quarto, ficas com uma decoração pós-moderna na sala e no escritório. E vidros e pratos partidos dão sempre um ar neo-realista de artista pós-contemporeaneo incompreendido. O Paulo chega. Fumo um maço inteiro de cigarros. Choro. Grito. Ele abraça-me. Telefono-te. Dizes que já é tarde e não vais passar por minha casa. Falamos outro dia. Já estás a estacionar, e assim que subires a casa me telefonas. Tu não sabes, mas não, não falamos outro dia. Falamos hoje. Eu disse-te que era hoje que íamos falar. E tu não sabes mas não, não vais precisar de ligar assim que chegares a casa, acredita. Paulo, sobe ao terceiro andar, quando o ouvires a entrar em casa, desce e espera-me no teu carro. Dá-me meia hora e eu desço. Acendo mais um cigarro. Dentro de segundos vais entrar por essa porta. Entras. Pões a mala no escritório. Vens à sala. Olhas para mim. Estremeces. Acabaste de levar um susto. Não sabes se estás assustado porque me imaginavas no Porto, em minha casa, ou porque temes que eu tenha descoberto tudo. Não te preocupes, já vamos desvendar esse mistério. Surpresa! Pensei que estavas em tua casa. Pois não, estou aqui. Vamos deixarmo-nos de rodeios e joguinhos. Vamos ser frontais, directos e honestos. Eu sei, que tu sabes, que eu sei. Mas quero ouvi-lo da tua boca. O quê? Que tens outra pessoa. Não tenho. Mas tens 30 anos. Já tens idade para seres adulto e frontal. Não sei do que estás a falar. Pego no patético diário e atiro-to à cara. Não percebo. Queres que to leia? Hoje vou dormir com o meu bebé. E está datado com o dia daquele desfile de moda, a partir do qual quase não nos vemos. Isso sou eu e a minha sobrinha que escrevemos, como que a imaginar as frase que te digo a ti. Juro que nunca tinha ouvido uma resposta tão deficiente e tão pouco inteligente. Continuas a fingir que estás sozinho. És um cobarde, Carlos. Não te digo, mas és um cobarde. Já reparaste que a palavra Carlos e cobarde começam pela mesma letra? Não te digo nada disto. Pego nas minhas coisas, a caixa com a árvore de natal, e uns sacos com umas roupas minhas, restos que ainda testemunham os dias em que éramos felizes. Ou que eu era feliz. E nós? Nós continuamos a dar um tempo. Ah! Ok. Saio. Vais levar as tuas coisas? Sim. Porquê? Alguma objecção? Não espero pela resposta. Vou ter com o Paulo, que me ouve e me leva a casa. Ficas bem? Hei-de ficar. Uma semana depois telefonas-me. O que é que andaste aqui a fazer em casa? EU?! Nada! Ah! Acendi as velas que estavam na sala. Não era para acender? E as minhas camisas? Toma-as como um presente de retribuição. E se as quiseres pendurar, sempre as podes pendurar na minha testa, há estendal do Porto a Espinho. O pouco que havia entre nós acabou. O pouco que havia entre nós, já acabou há mais de um mês quando me começaste a trair. Não sei do que estás a falar e devolve-me as minhas chaves de casa. Aproveita e devolve-me tu primeiro as minhas, já que não me consegues devolver mais nada. Adeus. Nunca mais te vi. Mas devolvi-te as chaves todas de casa. Deixei-as dentro de tua casa, na última vez que lá estive e parti os copos todos de champanhe. Não sei o que faziam em fila indiana no chão do hall de entrada mas já que me decoraste a testa eu decoro-te a casa e assim completam muito melhor a decoração neo-realista-contemporanea-moderno-absurda da tua nova casa-relaçao-estilo-de-vida.

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