27.2.07

AO CIMO DAS ESCADAS



Esta é a porta que dá para o meu mundo. Entro e a música está alta. Está tão alta que me faz estremecer, a mim e a todos os que aqui estão. Estavam todos à minha espera. É bom saber que temos pessoas que gostam de nós e que nos abraçam quando entramos por esta porta. As luzes são vermelhas e azuis. Acho que também são roxas, ou lilases, mas como eu sou daltónico, são azuis-ponto-final. Pedem-me para eu cantar a minha melhor música. Não sei qual delas. Qual é a minha melhor música? Aquela que me persegue e se instalou deitada dentro dos meus olhos ou aquela que escrevi a subir as escadas agora mesmo? Em tantos discos, sinto que todas são as minhas melhores músicas. Afinal sou eu que as canto. Começam todos, em coro, a cantar um tema muito conhecido, talvez até o mais conhecido. Eu não sei qual é, mas a banda sabe. A banda acompanha. As luzes mudam. Um fumo invade-me os pés, e é como se estivesse a dançar numa nuvem. Danço numa nuvem. Os bailarinos invadem-me numa coreografia sincronizada e a minha voz começa numa viagem inesperada, sem regresso, de quem não fez check in, e levantou voo mesmo antes do boarding. Descem painéis pintados por mim, com cores de mar e pêssegos e eu sou elevado numa espécie de estrado, que treme e faz o meu coração ganhar na corrida dos ponteiros. Enquanto lá em cima me colocam umas asas enormes brancas, uma fonte que se transforma em cataratas naturais, faz brilhar em focos de luz, e arrepiar todos. Não sei se da emoção, se do frio. Eu adoro água. Mas água em movimento. Rios, mares, cascatas. Água que se desloca para algum lado e vai purificando tudo por onde passa. Águas azuis como aquelas que vemos nos postais da Grécia. Depois, um grupo de bailarinos, que parecia homens-estatua, ganha vida, e completamente encharcados iniciam a dança do renascer, enquanto todos gritam e aplaudem, e eu desço, a voar, preso por uns cabo de aço muito fortes que quase me arrancam as costelas flutuantes e mal me deixam respirar para poder flutuar, e vou deixando cair algumas penas. É uma verdadeira emoção dançar, cantar e voar sobre as nuvens. Depois de assinar muitas fotografias a preto e branco, porque são as que mais gosto, têm um ar antigo e misterioso ao mesmo tempo, com uma assinatura que eu mesmo inventei, e que ninguém consegue decifrar, bebo uma taça de champanhe, enquanto tiro algumas das penas que ficaram coladas a mim. Ainda bem que não voei muito alto, estou cheio de fome e ainda me dava uma tontura lá em cima, e como não tinha hospedeira de bordo que viesse a correr se eu tocasse a campainha, nem sacos para o enjoo, não sei o que ia fazer. Talvez me atirasse directamente para a fonte, que mais parecia um lago enorme artificial, de modo que me refrescava a respiração e também me iria borrar toda a maquilhagem em tons prateados que demora horas a fazer. A orquestra estava mágica, quase senti os violinos a ganharem vida e a voarem comigo. Estamos todos a dançar e a desenhar sorrisos e gargalhadas, porque afinal as letras que escrevi ecoaram em todos os olhos e por momentos vi um mar de velas acesas. É uma sensação misteriosa de paz, sentir tantas velas juntas. É como estar no santuário de Fátima à noite. Não tem absolutamente nada a ver com religião ou espiritualidade, mas um poder e uma paz fascinante que nos deita a respiração numa rede em alto mar e vamos flutuando ao som da lua. Estou a ficar tonto do champanhe, ou é da fome ou é das gargalhadas, pois são todos tão divertidos, que desde que a musica começou ainda não parei de rir de felicidade. Sou feliz. Sou feliz nas musicas que canto, nas letras que escrevo, nos quadros que pinto. Pinto a minha vida a óleo, e não deixo secar, para assim escorregar melhor como um escorrega de água onde chapinho como os patos. Sim, sou feliz, mas estou tonto. Se calhar é da fome. É melhor fechar a porta e ir jantar que a minha mãe já me está a chamar pelo menos à mais de uma hora ao fundo das escadas.

Sem comentários: