18.5.07

A DANÇA DO MAR


Nunca tinha entrado no mar. Claro que já tinha visto imensas fotografias e imagens na televisão de praias paradisíacas, e sentia uma enorme curiosidade em conhecer e perceber aquele monstro enorme de água que se move voluntariamente num ritmo compassado. A imagem que tinha gravada era a de ondas gigantescas que me assustavam, qual montanha russa na feira popular. Eu era criança e ouvia as minhas amigas lá da rua falarem nas férias na Figueira da Foz ou na Nazaré e escutava-as com fascínio. Mas havia algo em mim que sabia que tudo aquilo, seriam apenas contos, lendas mágicas com as quais eu iria sonhar à noite, antes de adormecer. Imaginava-me a nadar, a nadar tanto, tanto que chegava ao outro lado do mundo. Aliás, o meu meio de transporte seria nadar, seria assim que me iria deslocar. Imaginava-me a boiar em alto mar e adormecer com a lua mesmo em cima de mim. Depois, um dia, descia até ao fundo do mar e ía passar umas ferias com as sereias. Elas viviam numa conchas enormes e usavam as pérolas para iluminar o caminho. As pérolas tinham tanta luz, que eram como candeeiros do fundo do mar. Fechávamos as conchas e dormíamos. Eu, dormia sempre com a concha fechada, fazia-me muita confusão dormir com tanta luz. Existia uma calma, uma paz e uma alegria que me fazia sentir viva! Uma das coisas que eu mais gostava no fundo do mar era a cor! O fundo do mar era repleto de cor. Existiam peixes e plantas de todas as cores que pintavam alegremente toda a superfície tornando o nosso caminho bem mais divertido. E sentia-me também sempre muito fresquinha e nunca tinha calor. Havia umas partes mais frescas que outras, claro, mas essencialmente, o fundo do mar era morno. Temperado. Era limpa, leve, fresca e vivia em paz.


Claro que anos depois esqueci-me de tudo e de como era bom viver no fundo do mar. Tinha crescido, começado a trabalhar, e chegava sempre tão cansada e preocupada que quando me deitava na cama, simplesmente adormecia sem pensar em nada e sem sonhar. Passei anos assim. Quando tinha ferias, aproveitava para pintar a casa e ajudar a minha mãe a cuidar do quintal e das flores. Eu em pequena brincava muitas vezes no quintal e no jardim, e ás vezes, aquelas flores quase que me faziam lembrar o fundo do mar. Alguns anos depois, a minha mãe morreu. Deixei a casa e fui viver para Lisboa e sabia que o mar aí já estava perto de mim. Mas tantos anos depois, tive medo que ele não me reconhecesse. Então fui adiando esse reencontro. Via as imagens na televisão de tantas pessoas junto ao mar, ao meu mar. Era como se, de certa forma, tivesse alguns ciúmes. Porque o mar era meu. Eu vivia no mar. Elas não compreendiam. Mas, e se de repente ele estivesse tão chateado comigo, por eu ter demorado tanto tempo, que me rejeitasse entrar e não me quisesse? E se, afinal, eu não soubesse nadar? E se o mar fosse realmente muito frio, quase gelado ao ponto de regelar todo o meu corpo até ao cérebro e não me deixasse pensar? Passei mais anos assim a pensar nisto, e depois desligava a luz e adormecia na minha caminha do meu quarto alugado na Rua dos Douradores. Mas hoje vim. Vim vê-lo de perto. Escrevo estas palavras neste diário e ouço as ondas a baterem umas contra as contras numa grande conversa e a desaparecerem na areia. Sei que conversam sobre mim. Umas perguntam-se porque demorei tanto tempo a chegar. Outras ficam felizes por eu estar finalmente ali a olhar para elas. E outras olham para mim e perguntam-me porque não me levanto eu e não lhes vou fazer companhia matando as saudades? Umas mais altas. Umas mais pequenas. É tão grande. É tanta água. Hoje é a ultima oportunidade que tenho de estar com o mar. Estou velha, cansada, muito doente e em breve morro desta doença que segundo os médicos, não me dá mais um mês. Eu não vou esperar um mês para que os médicos se felicitem uns aos outros por terem acertado na meta da doença e sentirem que finalmente havia um sentido para terem estado mais de 6 anos na faculdade. Levanto-me e caminho devagar até ele. Ambos estamos nervosos. Ele mais que eu. Eu tremo, mas é do frio, da doença e destas pernas rijas que já não têm grande equilíbrio. Sinto-o juntar-se aos meus pés descalços. Eu não sabia que o mar era tão frio. Caminho. Entro nele. Sinto-o a abrir-se para eu entrar. As ondas agigantam-se. Pulam e elevam-se de felicidade com o nosso reencontro. Sinto-o a abraçar-me. Deixo-me ir. É uma dança que me envolve num vaivém. Ele convida-me para dançar e eu vou. Danço a dança do mar. Deito-me no mar. Está frio. Não sabia que o mar era tão salgado. Tenho sono, tenho muito sono. Espero que as sereias tenham preparado a minha concha e tenham apagado a pérola, porque adormeço dentro de muito pouco tempo. Afinal os médicos tinham-se enganado, era bem mais cedo.

2 comentários:

[Ariana Aragão] disse...

Encontrarás certamente uma sereia. Talvez não no fundo do mar. Concerteza no fundo de ti.

Pralaya disse...

Linda a história, porfunda e com significado, tb quero ir assim deitado numa onda e levado pelo mar...