29.5.07

QUANDO A MINHA TIA SE CASOU


Quando a minha tia se casou nós chegámos e eu subi lá a cima ao sobrado e vi pousado numa cadeira um chapéu branco com uma flor e ao lado uns sapatos brancos. A minha avó tinha feito três panelas enormes de comida e os meus tios montavam uma espécie de barraca com ramos e folhas de eucalipto à porta. Até hoje nunca percebi para que era a barraca, parecia-me uma daquelas cabanas de praia, só lhe faltava uma rede, o som do mar e os gritos afogueados – é fruta ou chocolate – mas que de facto lá dentro era muito mais fresquinho, lá isso era. A minha tia tinha ido fazer caracóis, estava muito magra e tinha o cabelo preto. Ela estava muito calma, a contrastar com a minha avó que andava de um lado para o outro atarantada a pôr lençóis lavados nas camas onde nós iríamos dormir, e a comida e a comida, e o teu avô que nunca mais chega, aquele hóme põe-se na taberna e esquece-se da gente. As minhas tias andavam todas de um lado para o outro, talvez a competirem com a minha avó, oh mãe onde é que vossemecê vai, oh mãe deixe isso, oh mãe eu faço, oh mãe, oh mãe. Eu vou ver do vosso pai. Quando a minha tia casou parecia que ninguém queria dormir e deve ter sido a noite em que me deitei mais tarde, pois fiquei a ajudar a fritar os rissóis até tarde com as minhas tias, enquanto a minha avó dormia na camilha redonda armada de faca e creme de açúcar branco. E cada vez que acordava, balbuciava qualquer coisa – atã ainda nã está? – e alcatifava mais uma de mão com creme de açúcar branco os três andares do bolo que ia subindo. Lembro-me de querer brincar com aqueles bonequinhos de preto e branco e da minha tia São me dizer – nã pode ser filho, atã nã vez que são os noivos? – ora e eu não percebia, se afinal aqueles é que eram os noivos e estavam tão felizes e contentes a patinarem numa enorme pista de três patamares de açúcar branco, então para que é que era aquela trabalheira toda? Quando a minha tia se casou, desceu do sobrado toda vestida de branco, com o chapéu que eu tinha visto em cima da cadeira, agora em cima dos caracóis pretos. Vi o meu avô chorar e a minha avó, oh Xico vamos embora hóme que está atrasado, oh mãe a noiva é p’ra chegar atrasada, oh pai não chore, oh mãe, oh mãe. Os meus tios estavam todos de fato e gravata, pelo menos antes de irmos para a Igreja, porque depois de se sentarem a comer já tinha tirado os casacos e as gravatas e as camisas estavam todas desapertadas. Estava muito calor na Igreja e eu tinha uma camisa branca com umas riscas azuis fininhas e uns calções azuis-escuros com umas riscas brancas fininhas que depois vestia só aos domingos. Quando a minha tia se casou, havia uma mesa redonda ao fundo para mim e para os meus primos, que éramos uns sortudos porque éramos sempre os primeiros a sermos servidos. Depois eram o meu avô, o meu pai e os meus tios, depois aquelas pessoas lá da aldeia que eu costumava ver no café e não percebia porque é que estavam a almoçar conosco na casa da minha avó, e só depois é que a minha mãe e as minhas tias, que andavam a distribuir a comida, é que comiam, às vezes em pé outras vezes sentadas. Elas tinham aquilo tudo muito bem organizado, cada um na sua vez e não falhava nada. Quando a minha tia casou nunca mais dormiu lá em casa, nem nunca mais se sentou à noite no pial lá fora a conversar com o meu tio a rirem-se enquanto ele fumava SG Filtro e nós jantávamos lá dentro e a minha mãe, deixa-te lá estar aqui, onde é que tu vais? Agora sento-me eu sozinho no pial à noite lá fora, durmo no quarto do sobrado e o olho a cadeira vazia onde um dia vi o chapéu branco. Quando a minha tia se casou eu ainda não sabia que tu existias e que um dia ia desejar tanto levar-te ao meu Alentejo para nos sentarmos lá fora no pial à noite e te contar como foi que aconteceu quando a minha tia se casou.


à tia Clementina

5 comentários:

Pralaya disse...

Bela descrição da confusão dos preparativos de um casamento, visto pelo olhos de uma criança que ainda não sabe o que é um casamento.

Pedro Eleutério disse...

Achei a crónica muito bonita, contudo, muito curta. Senti falta de maior pormenor em relação a algumas questões. Mas no geral está muito boa.

Abraço
Pedro

Marco Fav disse...

Fiquei ainda com mais saudades da minha Avó!
Está muito bonito! Até porque, acrescentando ao que já foi dito, transmites uma nostalgia e saudade dos tempos que já lá vão, mas consegues no fim compensar com a espectativa das boas surpresas que a vida pode reservar.

Margaret disse...

ooohhh gostei tanto... snif snif. faz m lembrar dos casorios da minha familia :p gosto mt + assim do blog. beijokas

Martinha disse...

Ora aqui está uma bela descrição de um momento de família que te recordaste... Fizeste-me lembrar o baptizado da minha prima mais nova, que teve também tanta azáfama entre a família que esteve com os preparativos!
;)
Bom fim-de-semana!