24.7.09

PEDRO E UM PEIXE CHAMADO VANDA


10h da manhã. Entro no atelier, cheio de sono. Sei que o cheiro a tintas me vai acordar. Subo as escadas. Entro no gabinete e ali está ela. Não são as tintas que me despertam, é novamente a presença dela, ali no meu estirador. Coloco a mochila e o casaco nas costas da cadeira, viro as costas ao estirador. Viro as costas e finjo não a ver. Vou à outra sala buscar as amostras de tecidos. Entre as amostras encontro um tecido sem amostra nenhuma em forma de meias de criança. Volto. Ali continua ela às voltas circulares em cima do meu estirador. Porquê em cima do meu estirador? Porque é aquele que está mais perto da janela que dá para o jardim? Sim, eu gosto de pintar a olhar a natureza. Sim, gosto de receber luz natural enquanto escolho os tons das aguarelas. Mas isto é um peixe, não uma planta. Não me parece que precises de luz natural. Vais para a mesa do computador, é artificial mas também tens luz. Desculpa, não percebi? Estás com fome? Coloco alguns pedaços de comida própria da embalagem. Sento-me. Levanto-me. Vou ao estirador lá do fundo e tento resgatar as aguarelas nos escombros de croquis e borrões. A caixa das aguarelas está aberta. As aguarelas estão secas. O pincel com pêlo de marta além de ter o pêlo cheio de tinta-da-china e guache está também roído na ponta. Um pincel de pêlo de marta não serve para pintar casinhas em guache. Tenho três croquis para pintar esta manhã e as aguarelas estão secas. Olho o aquário. Um aquário redondo revestido todo ela a papel escrito: Vanda. Nem assim a criatura se vai recordar do seu próprio nome. É um peixe. Tem segundos de memória. Sem memória queria eu ficar desde que ela acolheu aqui as filhas para viverem no atelier. Que culpa tenho eu que o pai não queira ficar com as crianças? Estás com fome Vanda? Despejo da embalagem um pouco mais de comida. Vou ao Show-room buscar uma das peças da última colecção. Deparo-me com um cenário digno. Dois tímidos toalhões de banho amarrotados, nas trincheiras do sofá. Sento-me no meu estirador, e tento que o lápis e a minha mão me acalmem a respiração artística, terminando o esboço do croqui que comecei ontem. Olho os traços no papel branco. Não os consigo decifrar. Estão completamente esborratados em forma circular. Curiosamente este circulo ocupa o mesmo espaço que o Estúdio da menina Vanda. Estás com fome Vanda? É a quarta vez, esta semana que o nosso encontro se dá em cima do meu estirador, e existem mais três nesta sala. Estás com fome Vanda? O esquadro está partido. As revistas rasgadas. Os lápis sem bico. Sento-me no meio do atelier. Olho em volta. Aprecio todo o cenário. Não reconheço o meu gabinete de design. Onde está a magia criativa que me faz borbulhar a imaginação? Onde está o stress dos prazos de entrega dos projectos? Onde está o nervosismo da véspera dos desfiles? Olho em volta. Não vejo o meu atelier. Vejo o meu local de trabalho transformado em restos de um acampamento de crianças despoletado de um divórcio do qual eu não tenho culpa. Eu levanto-me de manhã para criar. Estudei design de moda, não educação infantil. Estás com fome, Vanda? Ainda estás com fome, Vanda? Não acredito que ainda estejas com fome, Vanda? Tens a certeza de que ainda estás com fome, Vanda? Oh, desculpa Vanda mas a embalagem está vazia. O quê? Estava cheia? Oh Vanda, não te preocupes amanhã quando eu vier trabalhar às 10h da manhã, já não terás fome.

1 comentário:

marco disse...

Eu é que tenho uma peixa (e não um peixe) chamada Vanda!! Como diz o artigo 1589º da Constituição da República Portuguesa, o exm. senhor Pedro Pina está a violar, directamente, direitos de autor de eu próprio Marco Ferreira!! Marcaremos um café para negociar as cláusulas da indeminização. (Pode-se pagar em géneros). Para mais informações contacte directamente comigo pelo telefone: 914567352 ou via e-mail para o: marcofilipeferreira@sapo.pt Obrigado pela sua compreensão
Cumprimentos e abraços Marco Ferreira