27.7.09

PEDRO A DORMIR ACOMPANHADO



Durmo numa cama enorme. Uma cama apenas com um corpo é uma cama vazia. Desde criança que durmo numa cama grande. Era adolescente e imaginava-me a dormir acompanhado. Imagino ali um outro corpo. Imagino o espaço que ocupa. Imagino abraçar esse corpo. Imagino o seu rosto. Na minha imaginação dormir acompanhado seria tão perfeito, que as duas pessoas estariam toda a noite aos beijos, olhando o rosto um do outro. Mas na minha imaginação faltava o pormenor do dia seguinte. Uma noite sem dormir implica um dia seguinte e todas as consequências de trabalhar à base de cafeína numa tentativa de me manter acordado. Na minha imaginação os dois rostos estariam virados um para o outro, sempre na comunhão e certeza da presença um do outro. No entanto, na minha imaginação faltava o pormenor da respiração. Dois rostos virados um para o outro, faz-me faltar o ar. Começo a ficar ofegante, numa tentativa árdua de beber algum oxigénio. Então na minha imaginação um dos corpos estaria de costas, porém estaríamos abraçados toda a noite. Mas na minha imaginação faltava o pormenor da temperatura. A meio da noite temos de retirar um cobertor, a manta. Seguidamente os lençóis serão também retirados tal como os pijamas que estão ensopados. O que a meio da madrugada origina a imagem de dois corpos a tremer de frio. Na minha imaginação, dois corpos abraçados seria a perfeição do aconchego. Porém na minha imaginação faltava o pequeno pormenor físico da posição em si, mais propriamente: o braço. Existe um braço que efectivamente abraça o outro corpo. No meu caso é o esquerdo. E o outro? O que se faz com o braço direito? Fica por baixo do outro corpo, sendo completamente esmagado e acordar dormente a meio na noite? Coloca-se por cima correndo o risco de cair na cara da pessoa? O que se faz com o braço direito? Então a minha imaginação de dormir acompanhado começa a ficar agravada com imagens de cabelos na minha cara, um ressonar que levemente entra no meu ouvido até me fazer acordar e adoptar a técnica do encontrão. Ranger de dentes. Empurrões. Cair da cama. A imaginação de dormir abraçado torna-se num verdadeiro pesadelo sem conseguir pregar olho toda a noite. Esqueço completamente toda a minha imaginação e aceito e declaro que é de facto completamente impossível dormir acompanhado. E um dia conheço-te a ti. E um dia sem imaginação, sem programar ou pensar e analisar posições abraço-me a ti e dormimos todas as noites abraçados. O que faltava na minha imaginação era o pormenor do ritual do beijo de boa noite e desta sensação de partilha do teu corpo com o meu corpo. Hoje sei que dormir abraçado não é imaginação e até hoje o meu braço direito nunca se queixou. Mas hoje tu não estás. O teu corpo abandonou a minha cama. Esta cama tornou-se fria, sem ar. O meu braço direito sente-se perdido à tua procura num escuro vazio. Hoje, continuo a dormir numa cama enorme. Mas uma cama apenas com um corpo é uma cama vazia.



(ao meu chocolatinho)

26.7.09

PEDRO, O COMBOIO E AS PERNAS DA SENHORA

Um comboio em movimento tem por fim chegar ao seu destino. Os corpos cansados desejam abandoná-lo, na não saudade do regresso. O comboio pára. Duas horas depois o comboio pára. Vejo o revisor quase arrancar a alavanca de emergência. O comboio pára. A viagem é como que suspensa e o ambiente ganha uma cor que não se entende. Os corpos cansados levantam-se repentinamente. As caras coladas às janelas anseiam perceber o motivo desta súbita paragem. Os corpos cansados, agitam-se. Braços gesticulam pelas carruagens. As caras ganham expressões de preocupação. As vozes não se percebem. O comboio está parado. Levanto-me. Saio do Comboio. Um aglomerado de pessoas, gesticulando culpados, não me deixa perceber o motivo pelo qual estamos parados. “A senhora caiu”, ouço uma voz explicar. O meu cérebro é abordado por memórias de histórias de pessoas que caíram debaixo do comboio. Mas esta não é uma história arquivada nas gavetas da minha memória. Esta história é aqui e agora. É uma tarde de Verão de muito calor. O comboio está parado. As horas passam. Faltava apenas uma hora para chegar a casa. Sinto-me egoísta com estes pensamentos. “A culpa foi do revisor, mandou o comboio partir, a senhora ainda não tinha descido”, ouço vindo de uma outra voz. Mas onde estava a senhora? Quem é esta senhora? A minha curiosidade pega-me nas pernas e avanço até perto da fita que nos impede chegar até aquele corpo. Vejo uma cabeça que se diz cheia de sede. Alguém lhe arranja uma garrafa de água. As suas mãos recebem a água. Aquela cabeça de aparentemente 40 anos, que se mostra calma, não olha para traz e espera pacientemente por aquilo que os próximos minutos lhe tragam. Espera também que ambulância seja o seu próximo transporte. Aquelas mãos pacientes que bebem água, não têm a consciência da imagem que vejo daqui de cima. Olho para o seu corpo. Entre as suas pernas e os seus pés falta um pequeno espaço. Os seus pés estão um pouco mais à frente. Fecho os olhos. Não quero ver. A imagem é desconexa. Não consigo fixar a imagem no meu cérebro. Uns pés fora do sítio. Afasto-me. Pego no telemóvel e aviso que vou chegar algumas horas atrasado. O comboio está parado. As pernas duma senhora estão por baixo. Os braços continuam a gesticular culpados. As vozes adivinham situações. A senhora ia a sair do comboio? A senhora ia a entrar no comboio? Se ela está de costas, ela caiu a sair do comboio. A mala dela está perto dela. As vozes concluem que aquelas pernas que agora estão por baixo do comboio, iam a sair. Saiu antes? Saiu depois? Quem viu? Quem não viu? Afasto-me. Entro novamente no comboio parado. Sento-me no meu lugar. Eu não quero saber do culpado. Eu não quero saber do calor que está. Eu não quero saber que estamos aqui há duas horas num comboio parado. Eu até já nem quero chegar a casa. Eu apenas quero esquecer aquelas pernas e aqueles pés fora do sítio. Porque eu, quando o comboio voltar ao seu movimento, vou chegar ao meu destino, com as minhas pernas, mas sei nas próximas viagens, não voltarei a esquecer aqueles pés que não chegaram ao seu destino.

25.7.09

PEDRO E A NOSSA NOITE DE NATAL COM OS BOMBEIROS


A tua avó morreu. É Natal e a tua avó morreu. Seis anos depois regresso a esse Alentejo. Na mesa, as rabanadas, os sonhos e a morte da tua avó. Essa avó morta que ainda há seis anos atrás nos dava biscoitos enquanto brincávamos aos Bombeiros no seu quintal. Os miúdos brincam. Os miúdos rasgam papéis de embrulho numa alegria tímida e controlada por um sentimento de vazio. Nós já não somos miúdos. Eu tenho dezoito anos. A família divide-se entre um velório e o final de uma ceia de Natal. Nós ficamos com os miúdos a ver filmes. Bissexualidade é o nosso tema nocturno. Não sei como aterra na conversa, mas desperta toda a tua curiosidade. Digo-te que ser bissexual é brincar ao Natal todos os dias. É ser o pai Natal e é ser a criança. É ter os dois lados que se complementam. Tens catorze anos, uma namorada e uma curiosidade fascinante. Fazes-me tantas perguntas que esquecemos as casas a arder na televisão e os miúdos a brincarem aos Bombeiros como nós, há seis anos atrás. Não fomos ao velório, ficamos esta noite de Natal a falar sobre corpos, sobre corpos de homens. Parto o Bolo-rei. Encontro uma fava. Digo-te que é sorte e que esta fatia é tua. Esta noite de Natal ainda não terminou. Ainda não te ofereci o meu presente. O velório também não terminou, mas a minha mãe rasga um intervalo para vir a casa dos meus avós. Diz-me que esta noite é melhor tu dormires no meu quarto, os teus pais vão passar a noite com a tua avó. Olhas para mim. Sei o que estás a pensar. Imaginas-nos certamente a brincar novamente aos Bombeiros. Os Bombeiros chegaram. Foi a minha mãe que os chamou. Um papel de embrulho atirado para a lareira ateou fogo. A casa da minha tia estava a arder. A casa cheira a filhoses. Comemos Bolo-Rei e não dizemos nada aos miúdos. Não contamos do Velório, da casa a arder, nem dos nossos olhos que se despedem do Pai Natal e ardem num fogo Natalício em palavras quentes, curiosas e codificadas. Desligamos a luz do quarto. Sinto o peso dos cobertores sobre o meu corpo. Sinto a tua mão. A tua mão quente pesquisa a minha carne. Beijamo-nos. Arrancamos o pijama um ao outro, numa necessidade faminta de nos enroscarmos. Não existem Bombeiros capazes de apagar o fogo desta cama. É aqui que te ofereço o meu presente. É aqui que te desejo Feliz Natal. No dia seguinte ao almoço, a minha avó diz qualquer coisa sobre gargalhadas a noite inteira no meu quarto. Sorrimos um olhar cúmplice de silêncio secreto. É o dia de Natal. É o funeral da tua avó. É este cemitério que substitui filmes familiares numa tarde de Domingo. E enquanto o caixão desce, olhamos um para o outro e ainda sentindo a memória do calor dos nossos corpos, um no outro, sentindo também o silêncio do segredo que dez anos depois perdura. Tenho vinte e oito anos. Sento-me nessa mesa de Natal, onde um dia me olhaste de soslaio. Não me olhas. O silêncio. Outros miúdos rasgam presentes de Natal, brincam aos Bombeiros e a casa ainda cheira a filhoses. E apesar de não olhares para de mim, sinto ainda a memória daquela que foi a nossa noite de Natal.

24.7.09

PEDRO E UM PEIXE CHAMADO VANDA


10h da manhã. Entro no atelier, cheio de sono. Sei que o cheiro a tintas me vai acordar. Subo as escadas. Entro no gabinete e ali está ela. Não são as tintas que me despertam, é novamente a presença dela, ali no meu estirador. Coloco a mochila e o casaco nas costas da cadeira, viro as costas ao estirador. Viro as costas e finjo não a ver. Vou à outra sala buscar as amostras de tecidos. Entre as amostras encontro um tecido sem amostra nenhuma em forma de meias de criança. Volto. Ali continua ela às voltas circulares em cima do meu estirador. Porquê em cima do meu estirador? Porque é aquele que está mais perto da janela que dá para o jardim? Sim, eu gosto de pintar a olhar a natureza. Sim, gosto de receber luz natural enquanto escolho os tons das aguarelas. Mas isto é um peixe, não uma planta. Não me parece que precises de luz natural. Vais para a mesa do computador, é artificial mas também tens luz. Desculpa, não percebi? Estás com fome? Coloco alguns pedaços de comida própria da embalagem. Sento-me. Levanto-me. Vou ao estirador lá do fundo e tento resgatar as aguarelas nos escombros de croquis e borrões. A caixa das aguarelas está aberta. As aguarelas estão secas. O pincel com pêlo de marta além de ter o pêlo cheio de tinta-da-china e guache está também roído na ponta. Um pincel de pêlo de marta não serve para pintar casinhas em guache. Tenho três croquis para pintar esta manhã e as aguarelas estão secas. Olho o aquário. Um aquário redondo revestido todo ela a papel escrito: Vanda. Nem assim a criatura se vai recordar do seu próprio nome. É um peixe. Tem segundos de memória. Sem memória queria eu ficar desde que ela acolheu aqui as filhas para viverem no atelier. Que culpa tenho eu que o pai não queira ficar com as crianças? Estás com fome Vanda? Despejo da embalagem um pouco mais de comida. Vou ao Show-room buscar uma das peças da última colecção. Deparo-me com um cenário digno. Dois tímidos toalhões de banho amarrotados, nas trincheiras do sofá. Sento-me no meu estirador, e tento que o lápis e a minha mão me acalmem a respiração artística, terminando o esboço do croqui que comecei ontem. Olho os traços no papel branco. Não os consigo decifrar. Estão completamente esborratados em forma circular. Curiosamente este circulo ocupa o mesmo espaço que o Estúdio da menina Vanda. Estás com fome Vanda? É a quarta vez, esta semana que o nosso encontro se dá em cima do meu estirador, e existem mais três nesta sala. Estás com fome Vanda? O esquadro está partido. As revistas rasgadas. Os lápis sem bico. Sento-me no meio do atelier. Olho em volta. Aprecio todo o cenário. Não reconheço o meu gabinete de design. Onde está a magia criativa que me faz borbulhar a imaginação? Onde está o stress dos prazos de entrega dos projectos? Onde está o nervosismo da véspera dos desfiles? Olho em volta. Não vejo o meu atelier. Vejo o meu local de trabalho transformado em restos de um acampamento de crianças despoletado de um divórcio do qual eu não tenho culpa. Eu levanto-me de manhã para criar. Estudei design de moda, não educação infantil. Estás com fome, Vanda? Ainda estás com fome, Vanda? Não acredito que ainda estejas com fome, Vanda? Tens a certeza de que ainda estás com fome, Vanda? Oh, desculpa Vanda mas a embalagem está vazia. O quê? Estava cheia? Oh Vanda, não te preocupes amanhã quando eu vier trabalhar às 10h da manhã, já não terás fome.

23.7.09

PEDRO E DESARRUMAÇÃO COMPANHEIRA


Coloco a chave na fechadura. Rodo para a esquerda. Entro em casa. Silêncio. Na sala, estão depositados restos de um casaco abandonado na noite anterior. As costas dessa cadeira, são testemunhas da minha semana. Arrumo, não arrumo. Não posso arrumar. Arrumo qualquer coisa. Nunca arrumo tudo. A t-shirt cheira a cigarros. Ou é o cinzeiro por despejar? Existe uma espécie de silêncio inevitável que contamina esta casa. O que fazer? Depois de jantar, não há nada para fazer. Existe um ponteiro enorme e pesado que se desloca vagarosamente em silêncio. O tempo é sempre tão grande aqui em casa. Pensar no dia seguinte? Arrumar os jeans que descansam sobre a cadeira? Lembro-me que nesse outro quarto, existia um armário, no qual camisas e calças, ordenadamente organizadas por cores, tamanhos e feitios, me ditavam uma espécie de lista calendarizada. Não, não foi sempre assim. Houve um tempo, mais pequeno, no qual estes casacos se encontravam distribuídos em cabides de tamanhos apropriados. Agora descansam onde podem, lutando entre si, as costas da mesma cadeira. Quando chego a casa, tenho sempre qualquer coisa por arrumar. Arrumo qualquer coisa. Nunca arrumo tudo. Não posso arrumar. Existe sempre algo por fazer, que me espera quando chego. Preciso de saber que algo está desarrumado. Necessito a desarrumação. Faz-me companhia. Essa camisola enrolada no sofá, precisa que eu a arrume, antes de me sentar a esquecer-me de mim. E encontro-me nos restos de uma semana cansada. Preciso duma casa desarrumada. Os livros deverão estar amontoados sobre uma mesa. Nunca ao alto numa estante. Os sapatos no corredor. E sempre um prato sobre a bancada da cozinha. Uma casa arrumada, não é habitada. É um hotel frio de emoções, sem lágrimas nem, risos. Uma cadeira vazia, espera eternamente o calor de alguém. As minhas cadeiras cheiram a mim. Cheiram a gente. Quando o relógio me manda embora, preciso de uma casa quente, desorganizada de emoções, recordações, memórias testemunhas da minha existência. Ocupo este fim de dia a fingir que arrumo qualquer coisa. Nunca arrumo tudo. Não posso arrumar. Que vou eu fazer sozinho numa casa friamente organizada? Arrumada? Cheirosa? Não! Preciso que falte sempre fazer qualquer coisa, para distrair e enganar o tempo antes de me deitar. Engano esta solidão que recorda as gavetas que outrora se pareciam com um jogo de xadrez, e que agora fechadas, escondem em silêncio, chaves enroladas em papeis, sobre lenços, canetas, rebuçados, um clip, um recado e uma factura em atraso de electricidade. Coloco a chave na fechadura. Rodo para a esquerda. Vejo a porta fechada em silêncio. Vou-me deitar. Enganei o tempo e fechei mais um dia de solidão. Não arrumei tudo. Nunca arrumo tudo. Quero ter sempre a certeza que quando chegar a casa, tenho companhia.

22.7.09

E ENTÃO? QUERES NAMORAR COMIGO?


Foi há um ano atrás que tudo aconteceu. Claro que este dia já era muito especial para nós, tal como para todas as pessoas que se gostam. Mas para nós era mais. Porque somos os dois muito românticos, e ligamos a estes dias que as pessoas inventam para receberem presentes e que nós aproveitamos para nos olharmos com um sorriso cúmplice que só nós sabemos o que quer dizer. E também só nós, é que sabíamos o que queria dizer a tatuagem provisória em forma de carácter chinês, que fizemos nesse dia à tarde no tornozelo, tu no esquerdo e eu no direito. É quase meia-noite quando a caminho da praia te ofereço as nossas pulseiras em forma de algema. Eu coloco-te uma e tu fazes-me o mesmo. Sabemos que estarmos juntos não é uma prisão, mas algemamo-nos um ao outro como símbolo de união, e assim também sabemos, que cada vez que olharmos o pulso, do outro lado existe alguém muito especial que encaixa perfeitamente na ranhura desta algema. Ofereces-me um bouquet de flores, que não é um bouquet de flores, mas de uns bombons com o sabor do teu sorriso e do teu olhar de criança doce. Doce e misterioso, consegues guardar e esconder nesse olhar, tão bem as surpresas, que por momentos pensava eu que não tinhas nada para me oferecer, e afinal não sabia mesmo o que me esperava. Escolhemos uma duna num canto na noite, eu estendo o cobertor vermelho, deitamo-nos a ouvir as estrelas e a ver o barulho do mar nas nossas bocas e percebo que naquela se fez magia. Alguém tinha estado ali antes de nós, tenho a certeza, e tinha pintado aquelas estrelas, e a areia e o mar, e pintou-te a ti também, pois era tudo tão perfeito, que temi que este romance não fosse real. Mas o que eu não sabia é que o pintor tinha mais uma tela, e te pintou um embrulho que me dás para a mão e dizes: isso não é para ti, é para nós usarmos. E desembrulho dois flutes vermelhos em vidro tosco, e vejo surgir da paleta uma garrafa de Moe Chandom. Não digo nada. Ficamos nos olhos um do outro a brindar aquela noite, e quase que me esqueço do bouquet. Esse bouquet que não é de flores. Esse chocolate que te ponho na boca, é feito da magia desta noite, e este que derrete na minha, és tu, chocolatinho. E se eu desenhasse uma música, esta noite, as notas eram as estrelas que saltitavam a cada onda do mar e se afundavam na areia para desaparecerem no Champanhe, num refrão de chocolate. E em arrepios de frio, abraçamo-nos, fechamos os olhos escondidos neste cobertor e quase que conseguimos ouvir essa musica. E também ouvimos a voz do homem que aparece não sabemos muito bem de onde e que admirado de nos ver ali, aquela hora a comer bombons e a beber champanhe, e sem perceber nada nos pergunta qualquer coisa que também nós não percebemos, mas respondemos-lhe que não, e que deve ser muito longe dali. E não sabia eu, que muito longe dali havia mais surpresas, uma janela em postal onde vejo esse coração vermelho que espanta todos os espíritos à janela do meu quarto, depois de um ano. E antes do frio apertar, e o teu corpo começar também a arrefecer e já não conseguir aquecer o meu, e antes de irmos pendurar o coração, fecho os olhos, ouço o mar, vejo as estrelas, sinto a tua mão, e sei que sou feliz. Tu olhas-me entre dois bombons e perguntas-me: e então, queres namorar comigo? E eu beijo-te que sim. Que sim. Sim. O que esperavas que te respondesse? O que é que se responde quando se está deitado na praia à meia-noite do dia de São Valentim, a ouvir o mar, a ver as estrelas, a comer bombons de chocolate e a beber Moe Chandom? Se te dissesse que não, no mínimo deixavas-me ali na praia deserta ao frio, pegavas no carro e ias-te embora para sempre. Mas para sempre quero eu ficar contigo, e vamos no bom caminho porque já estamos juntos à um ano e a tua rosa está em água para não desmanchar o arranjo, o poema no postal, os chocolates da Godiva no saco, e o restaurante à nossa espera. E quando for quase meia-noite deste ano, vou-te dizer que sim, que então, ainda quero namorar contigo.
ao meu chocolatinho
escrito em 11.05.07

20.7.09

MILKA, A VACA QUE DÁ CHOCOLATES!


"Temos de passar a correr em minha casa, esqueci-me de uma coisa! Não te posso dizer o que é! É surpresa!”

Assim que acordei, pus na aparelhagem o primeiro cd da Madonna de 1982 com a música HOLIDAY, bem alto. Toda a vizinhança tem de saber que estou de férias! Estou feliz e gosto de partilhar a minha felicidade! Fomos comprar umas t-shirts à última da hora. Tu, porque disseste que precisavas MESMO de umas t-shirts, e eu, aproveitei a onda e comprei não-sei-quantas! Estavas na fila para pagar e fui ter contigo, colocando no balcão as minhas mais recentes não-sei-quantas t-shirts. O funcionário olha para ti muito sério:


“tá?”

“Está!”


Olha-me este a querer conversa, pensei eu! Claro que está! Mas que raio de código morse é este? Desde quanto é que eu preciso de autorização monossilábica, para passar à frente da fila toda e ir pagar ao mesmo tempo que o meu namorado? Não me quero irritar! Estou de férias e vamos hoje para o Funchal! Daqui a 4horas já estaremos dentro do avião. É a primeira vez que vamos passar férias juntos e estamos os dois excitadissimos! Vamos para o Free Shop passear e experimentar perfumes. Estou tão feliz que me apetece comprar tudo. Compro uma t-shirt que diz “SEX INSTRUCTUR- first lesson free”. E não resisto a comprar uns chocolates. Mas a oferta é tanta que me dificulta a escolha e MUITO. Pareço uma criança a olhar para tanta marca de chocolate. Mas porque é que só têm embalagens tão grandes? Nunca percebi porque é que no Free Shop se vendem os chocolates em embalagens industriais. Será que todos os passageiros são considerados hiper gulosos ou quando viajamos passamos a depender exageradamente de chocolate? Queria comprar uma embalagem mais pequena! Mas que chatice! Não me vou irritar, afinal estou de férias! Compro uma mega embalagem de mini Tablerones que fomos comendo enquanto esperávamos pelo bording. Fizeste olhinhos de carneirinho mal morto quando olhaste a vaquinha da Milka e não resisti em oferecê-la, recheada de chocolates. Vai ficar a sorri no quarto abraçada ao Snoopy! Porque é que nas férias nos tornamos nuns compradores compulsivos? Quem é que disse que a alegria das férias se festeja a gastar o dinheiro que passamos o ano todo a poupar? Mas eu não resisto em te oferecer o peluche quando vejo esses olhinhos. Estou tão feliz por estar contigo e por irmos de férias juntos que se pudesse te oferecia uma vaca Milka em tamanho real para ficar lá em casa. Claro que ou era o sofá ou a vaca, alguma coisa tinha de sair, que a casa é pequena, mas eu sei que tu escolherias a vaca. E assim teríamos chocolates o ano todo. Sim, porque se as galinhas dão ovos de ouro, as vacas dão chocolates! Como quero ter tudo aquilo a que tenho direito, vamos buscar as revistas todas que nos pertencem! Quando finamente chegamos à Gate, estou a morrer de sede. Afinal ainda não parei de comer Tablerones e Milka, a vaca que dá chocolates! Meto uma moeda na máquina e compro uma garrafa de água! Impressão minha ou aqui no aeroporto é tudo muito mais caro? Não quero saber, estou de férias! Finalmente no avião olho para ti.

“Sim, podes ir tu à janela!”

Comigo tu podes fazer tudo aquilo que quiseres. Até podes ir deitado no meu colo o voo todo se o quiseres. É tão bom poder viajar contigo. Sei dentro de mim que esta é apenas a primeira de muitas viagens que faremos juntos. Vamos conhecer a Madeira toda. Queríamos ir também a Porto Santo, mas fica para o ano que vem! Dou-te a mão, olho para as nuvens e umas horas depois estamos no nosso quarto com vista para o mar azul. Azul como a Milka, a vaca que nos dá chocolates. Compro-te chocolates, e compramos bilhetes de avião, e t-shirts absurdas, e um jantar caríssimo na Marina do Funchal, porque na primeira noite estamos perdidos e não conhecemos nada. Mas não me importo de parecer um típico gastador compulsivo de férias, porque estou contigo, estou feliz e nós merecemos tudo. Lembraste? Foi há um ano atrás? Hoje estamos novamente de férias e cumprindo a promessa, vamos apanhar o avião para Porto Santo! Achas que a Milka, a vaca que dá chocolates está à nossa espera no aeroporto?


.(ao meu chocolatinho)

escrito 06.06.2007

19.7.09

O TEU OLHAR



Quando te conheci, olhei para ti, e tu olhaste para mim. Eu vi-te, mas hoje percebo que tu não me viste. Pelo menos não me viste da mesma maneira que eu te vi a ti. Mas viste algo que eu não vi. Viste a minha luz por dentro. Viste-me a mim. Como naquela noite em que passeámos juntos naquela praia. Viste-me a mim. E eu não me via. Mas tu ensinaste-me a olhar para mim. Ensinaste-me a gostar de mim, ensinaste-me a ver-me. E hoje vejo-me. Vejo-me porque tu me ensinaste a ver. E eu vi-te como alguém perfeito cuja calma e o sorriso declaram sempre paz. E eu vi-te com os olhos mais doces que eu já conheci. E eu vi-te com o olhar mais terno. E eu não sabia que tu não vias o mesmo que eu. Estávamos a ouvir aquela música da Bjork e eu pensei: “e se tu um dia deixares de ver completamente?” E não me respondi. Não sabia o que responder. O que se responde? Quando te conheci, olhei para ti, e tu olhaste para mim. Eu vi-te, mas hoje percebo que tu não me viste. Viste uma imagem desfocada. Olho para os teus olhos e parecem-me tão vivos, tão cheios de brilho. Olho para os teus olhos e vejo-os tão iguais aos meus. Não vejo qualquer diferença. Os teus olhos são iguais aos meus. A mesma cor, o mesmo brilho. Como podem não ver o mesmo? Não consigo imaginar o que estejas a ver. Não imagino sequer o que seja olhares para mim e veres a minha imagem desfocada. Às vezes tapo os meus olhos para imaginar o que tu vês. Mas não é a mesma coisa. Porque quando eu quiser posso voltar a destapá-los, e tu não. Porque se eu quiser posso focar a imagem que vejo. E tu não. Quando os meus olhos olham os teus olhos, eu vejo-te a ti e talvez tu não me consigas ver a mim. Quando te conheci, olhei para ti, e tu olhaste para mim. Eu vi-te, mas hoje percebo que tu um dia poderás não me ver. Tenho medo que um dia não possa dizer: “ vês, ali, aquela árvore tão grande!” porque nessa altura poderás não ver, e o “grande” será relativo à memória que ainda guardas de dimensão. Tenho tanto medo que um dia abras a janela e não vejas o sol. E que nesse dia seja noite para sempre. Mas eu vou acender-te a luz tal como tu um dia acendeste a minha. Porque eu estarei lá, contigo. Mesmo que um dia para ti seja escuro, eu estarei lá. Descrevo-te as pessoas a passar, a roupa delas, um menino que deixou cair o gelado, o velhote que vende cautelas, a rapariga que passeia o cão, o rapaz que pede um cigarro e uma moeda. E ouves todos estes sons. E o teu mundo será feito de sons. E será feito também da minha voz. Porque a minha voz estará lá sempre. Mesmo que um dia seja escuro, a minha voz está lá. A minha voz será os teus olhos. E os meus olhos serão os teus olhos. E se tu um dia deixares de ver, eu vejo por ti. Tal como no início tu viste por mim. Tu que vês tão mal ensinaste-me a ver tão bem. Como é que alguém que vê tão mal pode ensinar alguém a ver tão bem? Talvez seja esse o teu dom. O dom de ver, mas por dentro. Talvez seja isso. Viste a minha imagem desfocada, e isso fez-te olhar para dentro de mim e não te prenderes apenas a uma imagem. Porque afinal trata-se apenas de uma imagem. E agora percebo que tu vês muito mais com um olho do que as outras pessoas vêem com dois. Agora eu sei que não irás nunca precisar que eu te descreva as pessoas a passar e o barulho das árvores, e o som da chuva, porque tu vês muito mais do que eu. Vou deixar de ter medo que tu um dia deixes de ver. Porque eu sei que aquilo que tu vês, ninguém vê. E vou deixar de ter medo que um dia quando os teus olhos olharem os meus já não os vejam, porque eu sei que tu conheces a cor dos meus olhos, o brilho deles, e conheces de cor a maneira como os meus olhos olham os teus. Quando te conheci, olhei para ti, e tu olhaste para mim. Eu vi-te, mas hoje percebo o teu olhar.

(ao meu chocolatinho)

escrito a 29.07.2007

THE BEAUTY AND THE DATE




Hoje vamos oficialmente sair juntos. Quer dizer, não será bem oficialmente, porque será às escondidas, e ele não sabe. Mas será a nossa primeira saída a sério, juntos. É o nosso primeiro verdadeiro encontro, mas às escondidas. Como os americanos dizem “a date”. Tonight I haver a date. Dei-te a certeza de que ia ter contigo às 20h, de maneira que é melhor despachar-me, não quero chegar “leite” ao date! Já desliguei o telemóvel, e na ponta da língua está já colada “Fiquei sem bateria, e adormeci no sofá, a ver televisão!” para quando ele amanha me fizer o interrogatório diário. Mas eu não quero saber dele, nem dos interrogatórios, nem das prisões. Talvez se ele não me tivesse prendido tanto, eu hoje não tinha tanta necessidade de fugir. Fujo até ao Chiado à procura de alguém que me salve de tudo isto, e sobretudo de dele. O sobretudo, continua preto, deve ser tradição, mas hoje é a minha vez. Não tão comprido como o teu, mas com uma vontade imensa de te ver depois deste tempo todo. Combinamos na estátua do Camões, às 20h. E exactamente à hora marcada, estou literalmente em pé no último degrau da estátua. Vejo-te ao longe. Lindo. Caminhas, numa elegância aparentemente calma. Mas só aparente, pois os teus olhos vibram e espelham um forte abraço, de quem quer esmagar o meu corpo contra o teu, e permanecermos assim toda a noite, fundidos um no outro, a fingirmos que a realidade não existe e que tudo nos é permitido. O teu sorriso pinta-te a cara de todas as cores e quase te faz voar até à estátua e pegar na minha mão. E eu penso, quero que todos os nossos encontros sejam tão mágicos como este nosso primeiro encontro. Olhamo-nos. Ficamos parados a olharmo-nos com cara de parvos e a sorrir. Levas-me a um restaurante Indiano, ali no Bairro Alto, e sentados num tinto óptimo, começamos como que a falar. Provavelmente devemos estar a falar, as nossas bocas mexem-se, temos quase a certeza que por cima da Chiken Masala ecoa um som, acompanhado ao ritmo da gesticulação das nossas mãos. Mas os nossos olhos fundem-se. Cruzam-se e faíscam. Existe uma luz, um brilho tão intenso que daria para iluminar toda a cidade. Parece que alguém faz uma semana depois a árvore de Natal, mas que coloca a estrela no topo da nossa mesa. E uma semana depois da consoada, este jantar é o nosso presente de Natal. Não sabemos os que dizemos. Parece que é a primeira vez que estamos juntos e soltamos em liberdade palavras e frases nem nexo, mas que preenchem a mesa do jantar. Estarmos aqui, finalmente juntos, já tem nexo suficiente, as palavras não importam. O sentido somos nós e os nossos olhos, que de seguida vão olhar o écran de cinema num escuro aconchegante. Mas antes levas-me a tua casa. É no teu sofá cor-de-laranja que finalmente nos abraçamos e damos o nosso tão esperado beijo. Adorei conhecer a tua casa. Adorei estar nos teus braços, nesse sofá que ainda há-de marcar as nossas vidas. Continuamos sentados, mas agora não estamos abraçados, mas é como se estivéssemos. É um filme com a Sarah Jessica Parker, que nos faz rir das mesmas piadas, soltar uma lágrima contida e envergonhada, e apertar as mãos um do outro, como se nunca mais nos quiséssemos largar. Talvez a magia desta noite esteja na efemeridade de tudo isto, e vivemos cada segundo como se fosse o último, pois tememos não nos voltarmos a ver, ou pelo menos desconhecemos a data de um próximo date. Estar contigo no cinema, e ambos somos apaixonados por cinema, deitar a cabeça no teu ombro, dar-te a mão, olhar para ti de soslaio numa cena mais calma ou mais escura, ouvir a tua gargalhada colar-se à minha, sentir a tua mão apertar a minha com mais força numa cena mais romântica, parece tudo tão perfeito, que não consigo distinguir se sou eu que estou no cinema, ou se é a Sarah Jessica Parker que está aqui sentada a ver um filme de um sonho perfeito num écran apaixonado de duas pessoas que temem não voltarem a verem-se. Levas-me a casa. Estacionas do outro lado do prédio. O silencio penumbra o teu carro. A hora da despedida é sempre a mais cruel do relógio. O nosso até já, pode tornar-se num até sempre e um medo terrível invade-nos. As minhas lágrimas dizem-te que te quero muito, mas não desta maneira proibida, às escondidas. Ainda me sinto numa prisão, e é preciso primeiro libertar-me dela para poder deitar-me finalmente no teu peito e adormecer, sem sentir culpa. Tu entendes. Tu entendes sempre tudo. Foste tu que criaste a compreensão. Entro em casa e só penso em ti. Penso que quando eu menos esperava, o sonho de criança se materializou em ti e nesta noite. És tu a imagem dos meus sonhos e criações imaginárias de adolescente. Mas será no tempo errado? Ou não existirá erro, e o sentido de tudo isto, é causa-efeito, ou depois da tempestade vem a bonança, e é preciso um príncipe para nos mostrar que nos podemos libertar das garras de um beast do alto da masmorra, para que beauty posso viver o grande amor da minha vida, que és tu?


(ao chocolatinho)
27-02 - 07

O LUAR, O MAR E NÓS



E um dia tu telefonas-me. Era uma sexta à noite. Eu estava em minha casa, na solidão do meu sofá azul. Eu tinha-te dito uma vez numa mensagem que um dia ia dia passear à noite à beira-mar com alguém especial. Tu, como um verdadeiro príncipe, disseste-me que gostarias de me realizar esse sonho. Tive algum medo quando o disseste. Tenho a certeza que esse tal alguém especial de que eu estava a falar, sem eu saber, eras tu. Mas existia um pequeno pormenor que não permitia a este encontro a perfeição de um filme cor-de-rosa ao fim de tarde de sábado. O meu namorado. Ali estava eu sem saber o que fazer. Ele não estava comigo, para variar. Desta vez estava de fim-de-semana em casa dos pais. Quando não era trabalho, era a casa dos pais. Quando não era ir aos pais, era ir ao Porto, a trabalho. Incrivelmente nessa noite lembrou-se – estranho milagre assombrava os arredores de Lisboa – de me ligar a desejar uma boa noite. Como se fosse possível ter uma boa noite neste sofá azul solitário, quando a pessoa que nos pediu em namoro hà um ano atrás nem sequer faz um esforço para fingir que tem saudades e se esqueceu do meu aniversario, e pela noite numa pizza manhosa aquecida no microondas lá diz: hoje fazes anos, não é? Parabéns. Digo-lhe que me vou deitar e desligo o telemóvel. A tremer aceito o teu convite. Perto da meia-noite estacionas o carro à minha porta. Desço e deparo-me com o mesmo sobretudo preto, alto, comprido e entroncado de barba de três dias. Depois de tanto tempo voltámo-nos a ver. O cavaleiro andante de sobretudo preto vinha-me buscar às masmorras da minha solidão para uma noite de sonho. Demasiado irreal para ser possível? Troco o sofá azul pelo teu carro. E ali estamos nós. Sorris uma calma tão doce que me apetece deitar no teu calo, aninhar-me e adormecer nesse sorriso. Eu estava dentro do teu carro. Nós os dois a partilharmos um pequeno espaço apertado, que nos empurra um para muito perto do outro. Respiro fundo. Estamos os dois nervosos. Eu sento-me como que uma espécie de adolescente em ebulição, que coloca almofadas na cama a simular um corpo, e que salta às escondidas pela janela, para um encontro proibido. Isto era mais do que proibido. Se chegasse à cama dele a noticia de que estou aqui contigo, ele rapidamente se lembrava que eu existia – talvez pela primeira vez no nosso namoro – e logo tratava de me avisar que te mandava partir as pernas. Como era seu costume ameaçar toda a gente. Isto porque já deve ter percebido que os seus insultos quotidianos já não fazem efeito, não por eu ter descoberto qualquer vacina, mas por terem entrado em rotina. Mas eu não queria saber nada disso. Nem se ele ia descobrir ou se eu ia sentir culpa. Culpa de quê? De caminhar na praia? Nunca li em lado nenhum que é crime passear na praia. Sim, é de noite, e sim, vou contigo. Mas é exactamente isso que torna a noite tão mágica e tão especial. Se o tempo parasse, queria que o bloqueio fosse nesta noite, aqui nesta praia. Caminhamos contra o escuro à procura de umas pequenas estrelas coladas estrategicamente a nossa frente. Temos um imenso painel perfeito à nossa volta e estamos envolvidos nesse cenário brilhante e misterioso. Passeamos abraçados à beira-mar. Tu colocas o teu braço à volta dos meus ombros e eu encaixo o meu na tua cintura. Não teria coragem de o colocar discretamente no bolso detrás dos teus jeans, por isso ainda bem que vens de sobretudo. Caminhamos tanto nessa areia e esse sobretudo fica-te tão bem. Ficas misterioso, elegante. Belo. Será que é isto que se diz quando alguém se sente apaixonado? Estávamos completamente sozinhos. Não existia linha do horizonte. E nós não tínhamos destino. O nosso único propósito era aproveitar o melhor possível, este nosso passeio ao luar. Do nosso lado direito estava o mar. As ondas de água abençoavam o nosso encontro. Havia uma magia nessa noite, nessa praia, nesse mar, que a melhor das fadas não conseguia compreender. O teu corpo quente abraçado ao meu. O teu braço forte a proteger-me. O teu cheiro. O som das ondas era a música que nos fez por uma noite levitar. Desabafei contigo. Chorei. Falei-te que vivia uma relação já morta, e que eu esticava um pouco mais a corda na inocente esperança de aquilo se vir a tornar em qualquer coisa. Desprovida de qualquer romance, paixão ou emoção. Que os meus dias nasciam gastos e anoiteciam sem qualquer sabor. Mas que temia desistir. Apenas porque não me dava bem com esse verbo. E tu, como o verdadeiro cavalheiro que és, não comentaste. Poderias ter dito: “Estás assim porque queres. Larga-o. Eu estou aqui à espera que me dês a oportunidade de te fazer verdadeiramente feliz!” E estavas. Mas não. Não disseste nada. Mordeste o lábio e ficaste em silêncio. Nunca te pronunciaste sobre ele. Sabias que me amavas, mas amavas-me em silêncio. E aceitavas. Nunca pisaste o risco. Nunca tentaste fazer nada que eu não quisesse. E disse-te, que por mais que me apetecesse beijar-te, e aquele era o cenário perfeito para aquele que seria o nosso primeiro verdadeiro beijo, eu não o poderia fazer. E tu percebeste. Eu tinha um compromisso e não ia traí-lo. Apesar de saber que esse compromisso não tinha qualquer validade, e que estava mais do que caducado, senão eu não estaria ali. E cumpri a minha palavra de honra e não traí. E o mar foi minha testemunha. E não te beijei. Mas o importante não era o beijo em si, ou a falta dele, mas a emoção de estar ali, contigo. Nós os dois, à noite, a passear abraçados à beira-mar. O cenário magicamente perfeito e romântico, mas sem um beijo. E o importante a reflectir, é que eu tinha aceite o teu convite, e procurado a tua companhia, porque algo não estava bem na minha relação. Aliás, estava tudo errado. E quando alguém procura alguma coisa, a questão a perceber é: o que é que lhe falta! Infelizmente muitos apegam-se ao orgulho ferido de uma suposta traição – se é que esta noite se pode considerar traição, não penso que não – e esquecem-se de tentar perceber a origem do problema. E a origem do problema era ele, e o modo como me destratava. E isso é que era necessário ser resolvido. Esta noite não era o problema mas uma consequência do mesmo. Mas ele nunca se debruçou sobre isso. Nunca se questionou se me faltava alguma coisa e se me a poderia dar. Ele queria lá saber do romance. Ele jamais passeou comigo na praia à noite. Alias, nem sequer de dia. Quando me deitei, não conseguia deixar de pensar em ti e na noite perfeita que tinha tido ao teu lado, apesar de não ter sentido os teus lábios. Só mesmo alguém muito especial e muito sensível para me fazer viver uma noite assim sem ter tido em troca um beijo. Sabemos que termos sempre o luar à nossa espera, e o mar será nossa testemunha. E pensei, se eu ficasse contigo, seria sempre assim?

(ao meu chocolatinho)
escrito em 11.09.2006

18.7.09

NUM ALGODÃO DOCE COR-DE-LARANJA





Estás deitado na tua cama. Há quanto tempo estás deitado nesta cama? Não sabes. Mas hoje, este pequeno cor-de-laranja parece ter um outro brilho. Hoje, a cama parece mais pequena. Todas as noites, a cama parece-te tão grande. Ficas perdido numa grande cama cor-de-laranja. Mas hoje, esta cor, mudou de cor. Trazes contigo os meus olhos doces e deixas pintar toda a casa com o meu olhar que guardas em ti. Sabes que um dia eu me vou deitar nesta cama, aqui mesmo ao teu lado. Vou deitar a minha cabeça no teu peito, e vou dar-te um beijo de boa noite, e será um adormecer terno em algodão doce cor-de-laranja. Quando viste o meu olhar, sentiste que era eu. Ficaste por mim. Temeste não voltar a ver-me, e por isso ficaste disfarçadamente a contemplar os meus olhos doces. Os meus olhos tristes a pedirem colo. Tu dás-me colo. Vem. Vem para mim, pensas. Deita-te aqui ao meu lado. Vejo-te aqui na minha cama, como nesse dia me vi a mim mesmo deitado na tua, dizes. E que um dia eu irei dormir nessa cama, abraçado a ti. E pedes a Deus que me leve para a tua vida. Pedes-lhe todas as noites. Deitado no cor-de-laranja da tua cama, pedes-lhe. Perguntas-te se eu penso em ti. Pensas em mim? Viste os meus olhos a olharem os teus? Percebeste o meu olhar? Percebeste que entraste em mim e que jamais irás sair? Perguntas muitas coisas e tens-me dentro de ti. Sabes que eu penso que não olhaste para mim. Mas olhaste. Olhaste e viste os meus olhos doces. É assim que os chamas. É assim que me chamas. Sabes que penso que não falaste comigo, mas falaste. Talvez eu não te tenha ouvido, mas falaste muito mais do que eu possa imaginar. Mas não podias dize-lo por palavras. Era-te proibido. Tal como te é proibido quereres-me, sonhar-me. Não querias que ele desconfiasse que desejas fundir-te em mim e trazer-me para a tua vida. Por isso fingiste não me ver. Mas tu viste-me. Viste tudo. Viste que eu não estava feliz. Viste que preciso urgentemente de colo. E viste que estás aqui, de braços abertos, à minha espera. E pedes a Deus que me traga para a tua vida. Pedes-lhe todas as noites. Sabes que te é proibido amar-me. Mas também sabes que vivo na tortura de alguém, que não me faz sorrir. Eu não sorri uma única vez. Deixa-me ensinar-te a sorrir, pensas. Eu seguro na tua boca com as minhas próprias mãos. Moldo-te um sorriso feliz e seguro nas pontas da tua boca até elas terem vida própria e esse sorriso nunca mais sair de ti. Tens uns olhos doces de criança frágil. Eu dou-te colo. Sento-te no meu sofá cor-de-laranja, dou-te pipocas à boca enquanto rimos beijos a noite inteira. Podemos até adormecer cobertos de pipocas. E as pipocas serão cor-de-laranja, de um alaranjado doce neste algodão. Depois levo-te ao colo, nos meus braços, bem perto do meu peito, até ao outro algodão doce, a minha cama. Dizes tu baixinho na tua cama cor-de-laranja. Vês, como te desenho eternas noites de paz? É proibido pensar em ti? É proibido sentir o meu peito ofegante e um brilho nos olhos que me traz os catorze anos, cada vez que penso em ti? Perguntaste. Talvez seja proibido. Mas amar não pode ser proibido. Desenhares-me um sorriso não pode ser proibido. E a lei que não te permite aproximar de mim, não será mais forte que a lei que me permite ser feliz. E sabes que a minha felicidade é ao teu lado. Porque sabes, que a tua felicidade é ao meu lado. E hoje, que sabes, não vais desistir. Não vais desistir de mim. Não vais desistir daquilo que sentes. Vais lutar por mim. Vais lutar por mim. E sabes que lutas por um “nós” que se há-de aproximar. Tu nunca vais desistir. Ouves-me? Eu nunca vou desistir de ti. E peço a Deus que te traga para a minha vida. Peço-lhe todas as noites. E deito a cabeça nesta almofada, e abraço-me a esta outra, esperando o dia em que me possa abraçar a ti. E adormeço nos teus olhos, e percebo que foi essa mesma doçura, que transformou o meu sofá, a minha cama, a minha vida, num eterno e fofo algodão doce cor-de-laranja, pensas tu enquanto adormeces abraçado a essa grande almofada cor-de-laranja.




(ao meu chocolatinho)



escrito dia 21.08.2007

17.7.09

NUM GRANDE CENARIO DE PAPELAO




Um dia acordas de manhã e percebes que perdeste tudo. Perdeste o comboio, perdeste as horas, perdeste o tempo, perdeste a tua vida, perdeste os teus sonhos, perdeste até a única e grande oportunidade de seres feliz. E perdeste o amor. É de manhã mas é como se fosse noite. O sol já não existe e não tem qualquer importância. Olhas para a janela e é como se tivesse sido invadida por uma cor estranha que não consegues decifrar e que talvez nem sequer exista. Porque lá fora já não existe nada. Essa janela de que falas, é apenas cenário de cartão, numa parede falsa que te mostra uma fotografia mal tirada daquilo que tu sonhaste que poderia ser a realidade. Pensas que nem sequer vale a pena levantares-te do sítio onde estás e tentares tocar-lhe porque vais cair num vazio mais profundo do que aquele onde estás. Então não te mexas. Não faças absolutamente nada. Se é nisso em que acreditas, fica nesse buraco absurdo que tu construíste e de onde já não te consegues levantar e não faças nada. Já nem sequer existe nada a fazer porque as tuas pernas também não se querem mexer. Talvez nem sequer sejam pernas. Talvez sejam pedaços de um manequim de roupa em exposição com restos de uma colecção passada em cheiros de naftalina e suor, carcomidos por bichos e pelo tempo. E apercebes-te que a realidade, afinal não existe. Tudo não passa de um grande cenário mal construído. E até tu talvez não estejas aí. E agora? Essa crucial pergunta que separa o passado do futuro e tenta por em causa um presente. E agora? Levantas-te e tentas rasgar o cenário e caminhar até encontrares uma pedra por mais pequena e sozinha que seja, para começares a construir uma realidade. E se nunca chegares a encontrar uma pedra? A estrada dos tijolos amarelos foi pintada noutro sítio. E se não existirem pedras? E se essa estrada não existir? E se não existir nada? E se de facto já nada for possível? A Dorothy estava apenas a sonhar ou tinha tomado demasiados calmantes. Então deixa-te estar para aí deitado nesse buraco que tu construíste ou que algum cenógrafo construiu para ti. Porque até esse buraco vai desaparecer um dia. Porque o papel desfaz-se. Tudo se desfaz e se torna num imenso nada. E aí, vais tentar olhar essa janela da fotografia com uma cor que não consegues decifrar, e já não existirá janela. Já não existirá nada. Todo o cenário foi convertido em pó. E um dia apercebes-te que é tarde demais. Que tudo acabou. Que até o cenário falso se desfez e foi transformado num outro cenário para outros personagens. Porque tudo é cíclico. E voltamos sempre ao mesmo. Mas a mesma cena não é filmada duas vezes. Aproveita o cenário enquanto o tens, pois depois de dizerem: “corta” acabou a tua cena, a tua oportunidade e nem sequer resta a esperança de tornar esse cenário realidade, como que por um golpe de magia ou por trabalho árduo de esperança e luta. Vais continuar aí deitado? Ainda aí estás? Esperas o quê? Um sinal? Que te toquem à campainha e te digam: cheguei, sou eu, a realidade! Vim-te buscar! Então deixa-te aí estar à espera. Quando a campaínha ensurdecer ou tu próprio entrares num estado de decomposição zombie, já nada terá importância. Mas o que fazer? E agora? Outra vez essa pergunta? Essa pergunta, para a qual desconheço resposta, caso contrario não estaria aqui. E agora? E agora só tens de decidir se queres continuar nesse buraco ou se ainda te resta uma esperança de tentar demover esse cenário de papelão mal construído, e tentares primeiro derruba-lo e segundo, ir devagarinho encontrando pedras verdadeiras, amarelas ou de uma outra cor qualquer, que a pouco e pouco o transformem na realidade que sempre sonhaste para ti. E se nunca chegares a conseguir, pelo menos tentaste. Não te esqueças disso. Nem que morras a tentar. Segue o meu conselho. Talvez o comboio ainda passe outra vez. E quando entrares iras perceber que afinal era o teu relógio que estava mal sincronizado. E lá ao fundo estará alguém com uma caixa-surpresa para ti. A caixa dos teus sonhos. E essa caixa não será de papelão, nem será apenas um adereço. Será a possibilidade de seres feliz de verdade. E agora? Só te resta tentar.

(ao meu chocolatinho)

escrito em 10.09.2006


CONICA DO GRILO E DA AREIA



Quando me levantei sentia que o chão me estava a fugir dos pés. Como se a cada passo que desse sentisse o solo a tremer, prevendo a qualquer momento que a madeira toda estalasse e todo o prédio desabasse mesmo ali diante dos meus pés. É a mesma sensação de que quando tentamos agarrar areia com as mãos. É impossível. Ela esvai-se. Existem coisas assim na vida. Que são como areia. Queremos agarrá-las, mas não é possível. E parece que por mais que tentemos ou arranjemos soluções e estratagemas para que fiquem na nossa mão, vemo-las escorregar por entre os dedos. Assim são as relações. Às vezes parece que a única maneira que temos de as segurar é pegar numa pequena caixinha e guardar a areia lá dentro. Mas isso seria prender uma relação à nossa disponibilidade, à nossa vontade. Seria como prender um grilo numa caixinha de fósforos. Quantas vezes em criança não guardámos grilos em pequenas caixas de fósforos coloridas, e sem percebermos porquê um dia abrimos a caixa e o grilo não está lá? Não entendemos porquê. Porque temos a certeza que fizemos tudo o que podíamos, o que devíamos, e que o fizemos bem feito, mas o grilo arranjou uma maneira de nos escapar. Porque o grilo não nos pertencia, nem nos queria pertencer. Todas as pessoas são livres, mesmo aquelas que prescindem da sua própria liberdade. Um dia vão reclamá-la. E quando confrontadas com a falta dela, apenas um objectivo de se torna como meta: o de se libertarem. Podemos esperar que o grilo volte. Podemos por uma canção perto da caixa, uma luz de uma vela, prometer-lhe que a caixa vai ficar sempre aberta e que não vai ficar aprisionado a nós, mas com a escolha de entrar e sair pela sua vontade. Podemos fazer tudo. Mas também temos de aceitar que um dia a caixa pode ficar vazia para sempre. E não vale a pena substituir o grilo, porque tal como tudo e como todos, os grilos são insubstituíveis. Então o que faz o chão ganhar novamente estabilidade para se caminhar? A esperança? A honestidade? A pureza de sentimentos? Não esperar nada e aceitar simplesmente as dádivas da vida e do amor? E às vezes percebemos que afinal era tão simples. Estava mesmo ali ao lado e não nos demos conta. Olhamos a nossa mão e ficaram perdidos alguns grãos de areia. A areia afinal não escorregou toda. Alguns grãos ficaram na nossa mão e esses são preciosos. Ficaram porque queriam ficar. Ficaram porque tinham de ficar. E quando nos apercebemos que afinal temos nas mãos uma preciosidade é importante cuidá-la, porque as preciosidades são raras e devem ser cuidadas como uma borboleta, como um malmequer ou como uma música. E se cuidarmos, e não pedirmos nada, numa entrega absoluta de silêncio e dedicação, percebemos que por mais que lavemos as mãos, encontramos sempre um grão de areia colado. Aí podemos abrir a janela e ver que a borboleta se passeia pela nossa janela enquanto as pétalas do malmequer sorriem para o sol ao som da música. Claro que tudo isto dá muito trabalho. Mas nada se faz com muito esforço e as certezas absolutas não existem, muito menos a curto prazo. Mas se eu não te pedir nada em troca, se te der num silêncio puro de esperança, se te trouxer a água e o sol, se te prometer que nem sequer haverá caixa, porque o teu espaço no meu coração é do tamanho que tu quiseres ocupar, ficas comigo? E um dia, como que por magia, a areia que estava nas nossas mãos, e que tinha acabado de escorregar, volta a subir novamente. E nesse dia de milagre da natureza, sabemos que podemos caminhar novamente sem temer o próximo passo, pois sabemos que percorremos um caminho sólido sustentado pelo amor.
(ao meu chocolatinho)
escrito 10.09.2006

16.7.09

A NOSSA REDE CORDELARANJA



Está um passarinho mesmo na minha janela a cantar. As janelas todas abertas. Uma luz irradiante dum sol que me sorri, entra pelo quarto. Ontem atei um lenço que comprei, à tua cabeça e disseste: “É assim que eu me imagino! Numa cabana, com um lenço!” Eu sei. E sonho com o dia em que possamos abandonar tudo isto e viajamos para essa praia. Não existirá nem tempo, nem horas e o mar será todo nosso. Acordamos de manhã e vemos o mar. Caminhamos à beira mar depois de eu ter feito sumo natural de laranja com maçã. Tu ensinas-me a nadar. Subo às árvores para apanhar um coco, eu que não gosto nem do cheiro do coco, mas tem de ser feito. E tu dizes com esse teu sorriso perfeito e esses olhos meigos que tu tens: “Pareces mesmo uma criança!” Pareço, e sou. E ao teu lado não tenho medo de o ser. Ao teu lado não tenho medo de nada. Nem da criança espontânea que salta aos gritos de dentro de mim, que se esquece de tudo em todo o lado, e que diz que tu estás com “gripe interna”, o que te faz rir desalmadamente. Sei que te divirto. Sei, porque tu me fazes feliz. E nessa cabana, onde tu me vais ensinar a gostar de comer peixe, deitamo-nos na rede cor de laranja, que eu ainda não consegui pendurar na nova casa, por ser demasiado pequena – o que é uma chatice pois logo eu que sempre quis ter uma rede – e adormecemos abraçados enquanto eu te canto uma canção de embalar. Pode não ser uma canção mesmo de embalar, pode até ser uma canção qualquer, escolhe tu, mas cantada ali na rede, contigo, será a mais perfeita canção de embalar. Porque o que o que dá sentido às coisas não são mesmo as coisas, mas o contexto que está à volta delas. E essa rede cor de laranja embala-nos num sono tranquilo. Eu vou deixar crescer os meus caracóis para tu dizeres “menino dos caracolinhos!” e vou oferecer-te muitas calças de linho branco. E nas árvores mesmo à volta da nossa cabana, muitos pássaros vão cantar. Vão cantar para nós. Vão cantar uma canção qualquer, qualquer que seja, não importa, porque cantada ali para nós, será uma canção perfeita numa magia paradisíaca nessa ilha de luz e cor. Não precisamos de nada, temo-nos um ao outro. Nem de cama vamos precisar, temos a nossa rede cor de laranja para dormirmos abraçados. E realmente não precisamos mesmo de muito espaço porque dormimos a noite toda colados e agarrados. Como almas gémeas. Como corpos que nunca se querem separar. Como duas crianças que caminham de mão-dada num jardim de malmequeres e amores-perfeitos e nunca querem largar as mãos. E hoje que olho esta janela pintada de uma luz que me enche o coração e me faz suspirar, penso que tenho de conseguir pendurar a rede, mesmo aqui no quarto, para podermos começar a sonhar com esses momentos na ilha o mais depressa possível. Pois acredito que quanto mais depressa sonhamos os momentos, mais rapidamente eles acontecem. E vou sonhar muitos momentos contigo. Porque me trazes paz. Quando comprei essa rede à três anos atrás, não sabia eu que era contigo que a queria dividir. Ou se calhar sabia, mas não sabia que sabia. Porque partilhar uma rede com alguém é partilhar o mundo, o amor, um pássaro que canta, ver o céu e as estrelas, sentir o embalar do vento, adormecer como numa cama de bebé, é voltar ao colo, é sorrir, é sentir paz, é ver o sol a entrar e a pintar tudo de uma luz mágica brilhante como se tudo tivesse sido pintalgado de purpurina e adquirisse o brilho das histórias de encantar. E todas as tardes e noites em que me balançava nessa outra casa, na rede, sentindo o vento fresco que vinha da varanda, sentia que um dia te ia encontrar. Vieste como esse passarinho veio cantar à minha janela. Entraste na minha vida, sorriste-me, fizeste-me sorrir, dás-me paz e alegria e sei que nunca mais te iras separar de mim. Porque o passarinho não está preso numa gaiola. Pode voar, voar por todo o lado, mas livremente volta sempre à minha janela. É essa a paz e a liberdade do nosso amor. É a liberdade do passarinho que aqui canta, sem prisões, sem obrigações, sem explicações, apenas o sonho de uma rede cor de laranja pendurada numa cabana de uma ilha regada por um mar imenso de harmonia. E quando sairmos daqui, sei que já aproveitamos o que daqui queríamos e poderemos partir. Tudo na hora certa. E nem sequer teremos que questionar essa hora, porque saberemos que é a hora certa. Existe uma hora certa para tudo. E essa hora não explica, sente-se. Tal como tu entraste na minha vida na hora certa, não vejo a hora de chegar a hora de pegar nessa rede cor de laranja e ir pendurá-la contigo nessa ilha. Achas que quando sairmos daqui em Setembro, voltamos? Ou talvez seja melhor continuarmos a sonhar abraçados juntos a ouvir este passarinho que nos canta à janela irradiada pela luz purpurinada do sol e esperarmos pela hora certa de partirmos para sermos livres, livres de tudo e sentirmos que voamos em paz e amor?


(ao meu chocolatinho)

escrito em 10.09.2006

27.6.09

A MINHA CAMA

Quando te vi pela primeira vez, penso que não te vi. Ele convidou-te para apareceres lá em casa. Deve ter sido uma conversa agradável, daquelas conversas amenas e simpáticas, que não põem muita coisa em causa. Mas eu não me lembro de uma única palavra. Lembro-me que eras muito calmo. Que tinhas um olhar sereno e que mal olhavas para mim. Vocês falavam e eu, eu devia olhar o vago como é meu costume. Devia estar a pesquisar uma nova racha na parede branca ou a tentar contar os segundos que aquela mosca demora a levantar voo. Sou uma daquelas pessoas que levanta facilmente voo. Em criança quando não conseguia dormir, contava sapos às riscas e às bolinhas de todas as cores. Uma espécie de cruzamento de sapo com smarties. Quando de repente ele: “Não tens outro tipo de música, aqui em casa?” Aqui em casa, era minha e eu ouço aquilo que me apetece, que é o mesmo que ele faz na dele e me faz acordar às 8h da manha dentro de uma bola de espelhos em I Will Survive com We Are Family dos anos 70 a 80, numa década de gritos regada a Júlio Iglesias. Não percebo porque razão, ele ouve essas músicas, e não entendo certamente porque é que eu tenho de acordar com a Gloria Gaynor numa coreografia aos saltos, nos meus ouvidos. Quantas vezes, me imaginei a levantar da cama em direcção à aparelhagem e dar-lhe um murro certeiro mesmo em cima cd, para depois ir-me novamente para a cama. Isto depois de passar pelo w.c. e dizer “Ups, parece que a musica avariou, amor!” Se queria ouvir musica logo de manha então, pelo menos que pusesse algo mais budista ou yoga, quem tem muito mais a ver comigo. Quantas vezes, pensei que eu deveria era ter ficado na minha cama! A minha cama ali, numa solidão profunda e eu a adormecer quatro horas depois na cama de alguém que nem sequer boa noite me dizia. Mas uma vez mais, não disse nada e seleccionei no pc uma pasta qualquer para reproduzir aleatoriamente. Em toda a conversa, lembro-me de uma coisa, o teu peito. Eu observava com atenção o teu peito. Lembro-me de o ter imaginado derretido na minha cama e pensado que era um peito definido, e que bom deveria ser afundar-me nele e adormecer. Assim, a minha cama já não se ia sentir tão sozinha, à noite. Mas tu, mal me olhavas. Mas mesmo assim, percebeste tudo. Que eu estava com alguém que não me fazia feliz e isso transbordava pelos meus olhos como flechas a pedirem ajuda. Tiveste vontade de me salvar. Vinhas no teu alto, entroncado e elegante sobretudo preto comprido e na tua barba de três dias, salvavas-me daquele terrível monstro que me tinha aprisionado, e levavas-me para a minha cama. Eu não sabia, mas teres ficado ali, naquela desinteressante conversa, sem teres inventado à pressa um pretexto ou a morte de um parente qualquer para desapareceres, era o teu primeiro passo para me salvares. Ficaste ali sentado por minha causa. Não tinhas o menor interesse em estar a falar com ele. Mas como tinhas medo de não me voltar a ver, ficaste. Nunca vou esquecer essas palavras. Um dia alguém ficou, apenas por mim. Para estar comigo. Para olhares, sorrateiramente para mim, sem que ele percebesse. Aproveitando este, quem sabe, último e único momento para me poderes ver. Mas afinal que conversa era essa? De que falava ele sozinho, se afinal, nem tu o ouvias? Que queria ele de ti? Conseguiste escapar à conversa e a caminho da casa de banho, passaste pelo quarto. Olhaste a minha cama e pensaste: “Um dia, vou dormir ali!”. Devias ter-te deitado e nunca mais saído. Deitavas-te na minha cama e recusavas-te a sair. Como uma criança mimada que faz birra e esperneia que não se quer levantar. E assim éramos crianças novamente e como que por magia passavas a fazer parte da minha cama. Eu ia ao quarto e encontrava-te ali deitado. E sem perguntas, afundava-me no teu peito e adormecíamos em paz. Mas não te deitaste. Foste-te embora. Era noite. Quando te despediste olhaste para ele e disseste: “Depois telefona, um dia destes!” E eu senti-me tão invisível. E eu era de facto invisível. Nem sequer ali estive. Só depois compreendi porque fingias que não olhavas para mim. Por respeito. Porque não querias que ele se apercebesse de que te estavas a apaixonar por mim. Que cada vez que olhavas os meus olhos, te perdias ainda mais neles e te imaginavas deitado na minha cama. E houve um momento perdido no tempo e na conversa, em que tu, sem querer, deixaste escapar um olhar. Olhaste bem no fundo dos meus olhos e deixaste-me ver o fundo dos teus. Lembro-me desse olhar. Foi como sentir o fundo do mar. Eu vi o fundo do mar nos teus olhos. E tu sabias, que este, era apenas o primeiro passo para um dia te deitares na minha cama e eu adormecer no teu peito.

(ao meu chocolatinho)
27.09.2006

24.12.07

A ARVORE DE NATAL



Fazer a árvore de Natal e o Presépio, sempre foi uma tradição lá em casa. Desde pequenos que o fazíamos. O acontecimento passava-se geralmente ao Sábado. Levantávamo-nos cedo, íamos até à floresta mais próxima, que é como quem diz duas ruas mais abaixo, depois do liceu à direita. Cortávamos uma árvore pequena. Finalmente, a árvore passou a ter cheiro, o que não acontecia antes, mas a grande árvore artificial desmontável depois da viagem da Alemanha para cá, só se aguentou mais um ou dois anos e depois retirou-se. Retirávamos então algum musgo do chão ou das pedras, que guardávamos numa caixa. Nessa altura, vivia lá muito pouca gente, pois os primeiros presépios tinham muito poucas figuras. A minha mãe tinha-nos comprado a Nossa Senhora, o São José, o menino Jesus, a Vaca, o Burro e os três Reis Magos. Estes oito eram toda a população habitante. Encontrávamos no sótão algumas fitas e bolas vermelhas, que já vinham de quando vivíamos na Alemanha, combinadas com mais 2 ou 3 novas, de outras cores. Geralmente eram prateadas e azuis, mas as vermelhas eram sempre mais. Porque para mim o Natal é vermelho. Além de ser uma cor de força, é também uma cor muito quente, que me aconchega e me faz sentir protegido e em casa. Talvez por isso, anos mais tarde eu tenha pintado algumas paredes de vermelho em minha casa. Mas, os primeiros presépios e árvores de Natal eram assim, simples. Moravam num cantinho da sala e era sempre um entusiasmo e emoção construí-los. Principalmente porque sabíamos que em breve, ao lado do presépio, iria ser construído um novo condomínio pós-moderno, pintado, todo ele em cores brilhantes, motivos natalícios e muitos laços. Depois mais figuras imigraram, instalando-se na nova morada do presépio. A própria árvore começou a ficar mais vestida. Um ano, comprámos umas luzes que piscavam alternadamente a noite toda, que iluminavam a árvore e davam uma luz de mistério e magia à sala de estar, onde eu adorava estar à noite deitado no sofá a cantar, e a sentir a sala a mudar de cor a cada 5 segundos. Depois eu cresci, e um ano saí de casa. Quando voltava na altura do Natal, a árvore continuava lá, um pouco mais depenada, e a pouco e pouco o presépio foi demovido. Naquele canto da sala morava agora simplesmente uma espécie de árvore que simbolizava a sombra e recordação daquela que em tempos tinha sido uma verdadeira árvore de Natal. Na esperança e tentativa de recuperar alguma magia, comprei para minha casa uma árvore artificial e muitas bolas e fitas, mas que apenas esticou os braços duas vezes. Depois escondeu-se ela própria numa caixa, na qual permanece à 8 anos. Já mudou várias vezes de casa e de cidade na vã esperança de se poder esticar e exercer alguns exercícios de yoga. O Natal perdeu todo o sentido, e penso que acabei por hibernar com a própria árvore. Numa casa solitária, uma árvore não tem encanto, nem magia. O Natal prende-se exactamente com a união das pessoas, e na solidão de um sofá azul não é possível vivenciar esse espírito. Para que haja união, são precisas pelo menos duas pessoas. Mas este ano tudo mudou. Este ano, vou novamente comprar pais-natal de chocolate. Músicas de Natal vão soar e dançar nas paredes vermelhas. As bolas e fitas vão brilhar e reluzir e a adormecida árvore vai finalmente acordar depois de um longo Inverno de 8 anos. Vai descer ao solo, esticar-se à vontade, porque a união, esse tal espírito de Natal, pintou-me um sorriso e um brilho no olhar. Este ano, a árvore vai ser esticada e decorada a 4 braços, entre muitas gargalhadas, músicas de natal, muitos beijos e chocolates. E porque por mais romântico que seja ter uma árvore natural com cheiro a pinho, isto de cortarmos todos os anos milhares de árvores de Natal, está a matar a nossa Natureza e o espírito natalício prende-se mais com o nascimento. E ainda que seja uma árvore sem cheiro aparente, e de um plástico artificial, está tudo lá. Porque tu existes, e vieste dar sentido ao meu Natal. Feliz Natal!

18.12.07

DUAS GRAMAS DE TEMPO


Há quinze dias que nunca tens tempo para estar comigo. Tempo. O que é isso do tempo? Eu não sei o que é o tempo. É algum postal com números às cores ilustrado que tu não tens para me dar? O que é não teres tempo? Tempo, não é algo material para tu teres para me dar. O teu dia tem as mesmas 24h que o meu. Portanto, eu não tenho mais tempo do que tu. Talvez tu dividas as tuas 24h a que tens direito por dia, mal divididas. E de certeza que no final do dia, mesmo antes de te deitares, arranjas uns minutos para dispensares numa mensagem escrita de “olá! Saudades! Beijo!” Mas não, não tens tempo. Então vou eu atrás de ti, arranjar-te o tempo. Não levo um relógio especial – eu nem sequer uso relógio – nem um calendário, nem agenda. Vou simplesmente a tua casa, olhar para ti. Tenho saudades tuas. Sabes o que é? E isso não é algo que se mede como o tempo, mas algo que com o passar do tempo, aumenta. Hoje vou ver-te. Toco à campainha. Não atendes. Meto a chave na porta mas está torta, não entra. Uma porta pode ser um grande obstáculo, quando temos uma chave na mão que não roda e que impede de te ver, de matar as saudades, matar o tempo perdido. Abre a porta, vamos matar o tempo. Vamos matá-lo para que ele deixe de existir, e assim já não tens a desculpa de dizer que não o tens, porque ele não existirá. Coloco o dedo na campainha e deixo-o ficar. Não sei quanto tempo. Abres-me a porta. Estavas a dormir. Fazemos amor no sofá preto da sala. Dizes-me que é melhor darmos um tempo. Agora não entendo. Se tu não tens tempo, como é que de repente queres dar tempo? Como é que me vais dar algo que não tens? O que é isso de dar um tempo? Eu tenho-te dado todo o tempo que tenho. O tempo útil e o tempo de espera. O meu tempo é o teu tempo. E tu o que tens para me dar? Um tempo? O que significa um tempo? É uma nova expressão para me fazer ficar no meu sofá azul à espera que o telefone me diga que tem saudades minhas? Tu não me vais dar um tempo. Tu não me vais dar nada. Tu nem sequer tens nada para me dar, pois não? O tempo a que agora te referes é simplesmente o segundo passo assumido para o afastamento total dos nossos corpos, não é? Foi a última vez que fizemos amor, não foi? Não te pergunto nada disto. Aceito o tempo, e saio. Ou finjo que aceito. Olho a árvore Natal de Maio. Está assim porque ainda não tirámos fotografias com ela e com os nossos pais de natal de chocolate. Porque não tiveste tempo. Eu não quero que tu me dês tempo, ou um tempo, eu só quero que me abraces e que não digas nada. Abraça-me. E vais ver que no silêncio o tempo não existe. Antes de sair olho a tua cama. A minha fotografia que tentei que morasse ali, a olhar para ti a dormir, continua sem abrigo. Dizes que não queres que a tua empregada de limpeza saiba da tua vida pessoal, por isso a escondes no dia em que ela vem limpar. Curiosamente a semana tem 7 dias. Tens tanto tempo para a voltares a colocar no sítio. No meu sofá azul ainda ouço a tua voz que me explicas que continuamos namorados, e que continuas a gostar de mim, mas apenas estamos mais afastados. Então, qual é a diferença? Nos últimos quinze dias o único contacto que tive contigo foi “beijos” num sms. Qual é a diferença? Quem me dera encontrar uma caixinha azul cheia de tempo lá dentro para te oferecer. Uma semana depois vou a tua casa com o pretexto de ir buscar a minha toalha de praia. Recebes-me no escritório. Fechas a porta que dá para os quartos e vais tu buscar a toalha. Tenho a certeza que tens alguém em casa. Olho o chão do escritório inundado por sacos e malas. Vais mudar de casa? Não, é a minha sobrinha, vai aqui passar um tempo comigo a viver. E nós? Ah, é verdade! Nós demos um tempo. Não me beijas. Viras a cara. Cobarde. Sei que tens alguém dentro de casa e não assumes. Vou para a praia pensar sobre o tempo. Uma outra semana depois vou a tua casa. Meto a chave que me deste na porta mas por coincidência, ou não, nesse preciso momento estás a sair de casa. Fechas a porta atrás de ti e saímos. Conversamos no teu carro. Tenho saudades tuas. Está a passar tanto tempo. Dizes-me de novo que não, não terminámos o namoro. Digo-te que gosto muito de ti. Olhas-me nos olhos. Também gosto muito de ti. Era a última vez ía ouvia isto moldado pela tua voz. Perguntas-me se tenho dinheiro para o comboio. Saio. Não entendo a tua preocupação. Não entendo para perpetuas um pouco mais aquilo que sabes que é eu nunca mais te ver. Porque arrastas o tempo? Porque me mentes? Porque me dizes gosto de ti, se no fundo nem sequer me queres ver? Porque finjo que acredito em ti? Porque me calo com pena de mim? Porque não tomo uma atitude e desenho eu o fim? Porque perpetuo um pouco mais este sofrimento? É tudo uma questão de tempo. Não sei quanto tempo é que este tempo que tu queres dar tem. Mas eu espero. Já estou à espera há tanto tempo. Vou procurar a tal caixinha azul cheia de tempo. E se a encontrar posso telefonar-te? Sabes, eu ainda não sei o que é o tempo, mas lembro-me em criança de ouvir que o tempo perguntou ao tempo, quanto tempo o tempo tem, e que o tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem.

5.10.07

ESTÁ TUDO ÓPTIMO!

Eu costumava ser daquelas pessoas que quando lhe perguntavam “está tudo bem?” respondia sempre “mais ou menos” ou então o típico “vai-se andando” ou “assim, assim” ou melhor ainda “cá estou, na minha vidinha de sempre”. Como se viver fosse um fardo terrível de aguentar, ou como se de facto tudo me corresse mal e fosse a pessoa mais triste e com menos sorte do mundo. Era a típica pessoa que se lamentava, que se queixava, que nunca estava bem e que não só deixava transparecer isso aos outros, mas principalmente se esforçava para que fosse percebida esta eterna angústia de viver em permanente estado de não-estar-bem. Talvez o fizesse para que tivessem pena de mim, já que eu própria vivia nessa eterna pena de mim. Agora não percebo sinceramente o que ganhava eu com isso. Talvez uma certa simpatia ou compaixão por certas pessoas, e uma tentativa de cumplicidade em ouvir por vezes “coitadinha” ou então “como eu te percebo”. Mas de facto agora percebo que as pessoas ao fim de algum tempo se cansavam desta minha eterna tristeza e nostalgia e se afastavam. E de repente comecei a transmitir essa imagem às pessoas, uma imagem de alguém eternamente triste, sempre a lamentar-se, incapaz de sorrir, a quem tudo corria mal, e a quem parece ser impossível satisfazer, agradar, fazer sorrir ou fazer feliz. E o mais incrível é que agora percebo que não só eu tinha prazer em me sentir assim, e prazer em falar de mim nesses termos tristes e de me lamentar, como também o facto de estar constantemente a faze-lo provocava e originava ainda mais tristeza. Realmente não somos aquilo que somos, mas aquilo que demonstramos ser. E passamos a ser aquilo que os outros vêem. Um dia ensinaste-me a dizer “está tudo óptimo” mesmo que não estivesse. Percebi que deveria fingir. De facto ninguém tem nada a ver com as minhas tristezas, principalmente aquelas pessoas que não queriam realmente saber como eu estava, mas apenas faziam a típica pergunta género frase-feita “está tudo bem?” mas não queriam mesmo saber se estava tudo bem comigo, apenas o perguntavam por hábito. Então comecei a defender-me dessa frase feita que não era de facto uma pergunta e que não queria dizer absolutamente nada, e comecei a responder com algo que igualmente nada queria dizer: “está tudo óptimo”. E percebi que deste modo as pessoas continuavam a sorrir para mim. E incrivelmente eu começava também a sorrir. Apesar de saber que era mentira, que eu estava a fingir, porque de facto não sentia que estivesse tudo óptimo, mas continuava a dizê-lo. E explicaste-me que nunca deveria dar o flanco, nem permitir que as pessoas soubessem como realmente me sentia. E a pouco e pouco quando me perguntavam “está tudo bem?”, naturalmente respondia “está tudo óptimo”. E o mais incrível é que quanto mais digo “está tudo óptimo” mais começo a familiarizar-me com esta frase que começou por ser uma defesa, uma mentira, e a pouco e pouco começo a acreditar nela. E agora percebo que quanto mais o digo, mais provoco a que de facto esteja tudo óptimo na minha vida. E isso faz-me sorrir. Já não tenho pena de mim. Já não me lamento. Caminho com um sorriso pela rua, de cabeça erguida e sinto-me feliz. Sinto-me feliz apenas porque passei a acreditar e a demonstrar que sim, que “está tudo óptimo!”

19.9.07

24HORAS DEPOIS

Este era o dia mais feliz da minha vida. Já há algum tempo que não via os meus pais. Eles vieram de propósito para a estreia. Apresentei-te a eles. Finalmente conheceram-se. Claro que tu como tens esta estranha relação com o tempo, esta tarde fizeste-me chegar mesmo em cima da hora. Claro que não me fica nada bem chegar atrasada à estreia do filme no qual sou protagonista, mas como estou muito feliz não quero estragar a noite com os teus atrasos. No final do filme, quando todos aplaudiram, os meus pais tiveram logo de se ir embora porque a viagem ainda é longa. E tu, que tinhas umas coisas para terminar no escritório, também te despediste e combinamos às 22h30m da noite em minha casa. E aqui estou em minha casa na noite da estreia do meu filme, a noite mais feliz da minha vida, sozinha. Uau! Sinto-me tão feliz! Que feliz que eu estou! Acho que neste momento, se fosse um bocadinho mais feliz, rebentava de tanta felicidade! Telefono ao meu ex-namorado, que está a jantar com uns amigos num restaurante Chinês, e vou lá ter. Depois vamos ao cinema, mas desta vez a protagonista não sou eu. Se bem que não me importava nada de dividir o écran com o Di Caprio, em “A Praia”. Estranho estar no cinema outra vez, no mesmo dia, em que, há poucas horas atrás, eu era a protagonista. Também há poucas horas atrás, este era o dia mais feliz da minha vida, e agora aqui estou eu. O filme acaba às 22h e não aceito o convite para ir beber um copo. Vou logo para casa, porque tu estás quase a chegar para terminarmos o dia mais feliz da minha vida com uma noite perfeita. Faço um chá e preparo uns bolinhos. Ligo a televisão. Tomo um banho. Perfumo-me. Espero por ti, que já estás outra vez atrasado, pois quando olho para o telemóvel este diz-me que já é quase meia-noite. É uma coisa que nunca vou perceber, porque é que os homens têm esta estranha relação com o tempo. Nunca conheci um homem que chegasse a horas. É isso que vos ensinam na escola quando estão a jogar futebol? “Nunca se esqueçam de chegar atrasados, e de deixarem as raparigas à espera!” E a verdade é que nós esperamos por vocês. Porque, já lá vão duas idas ao cinema no mesmo dia, e aqui estou eu novamente em casa, sozinha. Começo fortemente a suspeitar que este não é definitivamente o dia mais feliz da minha vida. Por volta da uma da manhã ligo-te, mas não atendes. Penso que já deves vir a caminho e por isso não atendes. Mas também poderias ter enviado uma mensagem escrita a dizer: estou atrasado, não podias? Já que vocês sabem que chegam, sempre, atrasados porque é que não começam a enviar mensagens de aviso? Agora os telemóveis até já trazem aquelas mensagens modelo, género telegrama stop stop. “Estou atrasado.” Claro que três horas depois nós já percebemos que vocês estão atrasados, a mensagem não traz novidade nenhuma, mas pelo menos mostra que se preocuparam. É uma questão de atitude. E a única atitude que me acontece enquanto reflicto sobre “os homens e os seus atrasos” é adormecer vestida no sofá, sozinha, por volta das 3h30m da manhã. Acordo sobressalta às 7h30m. Olho para a porta, continua imóvel. Estupidamente vou ao quarto ver se tu estás, mas a cama está intacta. Sem sequer tomar banho, nem lavar os dentes saio a correr de casa e vou para a tua. Mas tudo me indica que não estiveste em casa. A cama feita, impecável como eu a deixei ontem à tarde. No sofá não há uma ruga e as almofadas estão todas alinhadas. A loiça lavada na cozinha, e no frigorífico não falta nada e nem sequer existe lixo a mais no balde. Onde estás? Onde estiveste tu estas horas todas? Onde passaste a noite? Continuo repetidamente a ligar para o teu telemóvel mas não atendes. Tenho medo que do cansaço tenhas adormecido a conduzir e tenhas tido algum acidente. Tu andas com excesso de trabalho. Imagino-te no meio da auto-estrada, deitado no chão, ensanguentado. O carro desfeito contra uma árvore e o telemóvel a tocar. Entretanto o telemóvel deixa de tocar. Está desligado. Devo ter-te gasto a bateria toda. Não sei o que fazer. Estou em tua casa, e tu não estás. Combinaste comigo ontem às 22h30m da noite e já se passaram quase 12horas. Tomo um banho. Lavo os dentes. Decido começar a ligar para os Hospitais à tua procura. Para a polícia só podemos ligar 24horas depois, que é o tempo exigido para se considerar um desaparecimento. Numa última esperança ligo novamente para o teu telemóvel, mas desta vez já toca novamente, mas mais uma vez tu não atendes. Mas se estava desligado há pouco, quer dizer que o ligaste. O que quer dizer que estás consciente. Mas onde estás? Eu já nem sei se estou chateada ou preocupada, mas realmente tenho de confessar que desta vez estás um bocadinho atrasado. Vou para o escritório e abro armários, gavetas, pastas, dossiers, agendas, blocos de notas, à procura de um indício qualquer que me ajude a perceber onde estás. Nada. Não encontro nada. Não sei para quem hei-de ligar. Não tenho o telefone de nenhum amigo teu. Encontro o telefone da tua irmã. Sei que é um atrevimento da minha parte, já que nós nem sequer nos conhecemos, mas com a maior das latas decido ligar-lhe a perguntar por ti. Afinal este número parece ser a única esperança que me liga a ti. Agora fico eu sem bateria no meu telemóvel, de tantas vezes que já te liguei – pelo menos uma delas poderias ter atendido, escusavas de me fazer passar por isto tudo – e com as pressas, nem sequer trouxe a porcaria do carregador. Daqui a pouco quem precisa de ser carregada, sou eu, que não tenho bateria nenhuma, e já são quatro da tarde, ainda não comi nada o dia todo e estou neste stress à tua procura. Pelo menos podias ter deixado umas pedrinhas pelo caminho para eu seguir o teu rasto. A única solução é ligar-te de uma cabine de moedas, já que não tens telefone fixo. O problema é que por esta altura essas cabines já começam a estar em vias de extinção. Procuro pela cidade toda e encontro uma perto da estação de comboios. Não tenho muitas moedas, de maneira que isto terá de ser rápido. Ganho coragem, ligo. Atende o tal de teu cunhado que te passa o telefone. Dizes-me que estavas muito cansado, acabaste por jantar em casa da tua irmã e que adormeceste. Isto até serviria de desculpa para ontem, mas como também já deves ter almoçado, já tiveste tempo para perceber que marcaste comigo ontem às 22h30m da noite, e que já passa das 16h da tarde de hoje e não sei nada de ti. Dizes-me que vens já para casa, para eu esperar por ti. Como se eu tivesse feito outra coisa desde as 22h da noite de ontem. Vou para tua casa, sozinha. Não sei o que sinto. Estou furiosa, nervosa, irritada, contigo e comigo, por continuar à tua espera. Por volta das 18h da tarde ligo para o teu telemóvel, desta vez atendes e dás-me a mesma resposta. E começo a não perceber qual o teu significado de “vou já!” Talvez o teu “já” não seja igual ao meu, mas pelo som ia jurar que tem um Jota, um A e um acento. Compro umas bolachas no Pingo Doce. Deito-me no teu sofá a ver o “Psico” do Hitchcock para me relembrar de que ontem não foi definitivamente o dia mais feliz da minha vida. E por coincidência, o de hoje também não. Por volta das 22h30m da noite entras em casa. Pedes-me desculpa, prometes que não volta a acontecer. Logo agora que se estava a cumprir o prazo para apresentar um desaparecimento na policia. 24h depois.