12.9.06

OS DESPERTADORES



São oito da manhã. O teu telefone desperta-te, levantando-te da cama e permitindo-me a mim dormir mais um pouco. O que é raro acontecer, pois acabo por não ter mais sono, e ou fico a ler um livro ou levanto-me e vou inventar coisas para fazer. Quando não tenho de me levantar ao toque despertar sinto um alívio, e talvez por isso não tenha sono. Quando esse ruído alarmante se dirige a mim, tendo sempre a resistir-lhe muito e a ter muito sono. Enterro a cabeça nas almofadas, literalmente falando, pois coloco as duas por cima da cabeça, para não ver qualquer tipo de luz, e para me sentir como que escondido. Quando era criança era a minha mãe a encarregue dessa triste e árdua tarefa de me ordenar e me informar que era a hora de abandonar aquele abrigo e esconderijo quente entre almofadas. Claro que se sucediam os típicos “só mais cinco minutos!” O que ainda hoje acontece, e apesar de eu ser um praticante adepto do “só mais cinco minutos!” não consigo explicar o que de tão especial existe nesses cinco minutos que nos faz acreditar que recuperamos o sono todo, ou que salvamos o mundo, ou que reflectimos sobre tudo, chegamos a brilhantes soluções, e que naqueles preciosos e enigmáticos cinco minutos se encontram as soluções para todos os problemas. Claro que por vezes existem muitos dilemas a resolver, e os “só mais cinco minutos!” duplicam-se, triplicam-se, e que depois me faz ir a correr sem muitas vezes ter tido tempo de tomar um banho ao meu ritmo, mas dar um mergulho no duche frio e sair porta fora. Esta coisa de reflectir com as almofadas vem-me do meu pai. O meu pai quando estava sentado no sofá durante um filme ou um documentário, de olhos fechados e quase e ressonar, nunca estava a dormir, estava a pensar. “Estou só aqui a pensar.” E de facto percebi que como era mais crescido que eu teria portanto mais dilemas a serem resolvidos, e talvez não lhe chegassem os “só mais cinco minutos!” para pensar tudo, por isso aproveitava também o final dum filme na estadia do sofá para ir adiantando serviço. Quando entrei na adolescência decidi que já tinha idade para acordar responsavelmente com um despertador e surpreender a voz minha mãe. Punha o despertador cinco minutos mais cedo, levantava-me, e quando ela cautelosamente me vinha informar da hora, do meu quarto surgia um orgulhoso: “Já estou levantado!” Quando comecei a viver sozinho, a coisa começou a complicar-se, pois já não existia ali aquela tábua de salvação que resolveria a situação, nem que tivesse de me arrancar da cama, mas de facto a minha mãe já não estava ali para o caso da coisa correr mal. Passei por varias fases. Acordar ao toque do alarme sem ripostar, levantar-me e chegar a tempo e horas. Acordar antes do despertador, ficar a rir-me dele num tom de irónica vingança e chegar cinco minutos antes. Chegar muitas vezes atrasado por assistir ao milagre da multiplicação dos “só mais cinco minutos!”, milagre que me vez muitas vezes me fez nem sequer aparecer e faltar a manhã toda. Era um milagre que conjuntamente com a sensação de abrigo, de protecção e calor acolhedor de uma almofada, transformava a caminha cama no paraíso. Depois comecei a tentar enganar e contornar esse milagre. Era só uma questão de adiantar o alarme para trinta minutos antes da hora e assim ainda podia assistir a seis milagres da multiplicação dos “só mais cinco minutos!”, levantar-me e chegar a horas. O que incrivelmente muitas vezes não funcionou, pois o homem consegue enganar uma máquina mas não se consegue enganar a si próprio se não se propõe a acreditar na sua própria mentira. Por isso muitas vezes adiantei a hora do relógio uns minutos depois para me fazer acreditar que já era muito tarde e em pânico fugir da cama. Mas acabava sempre por fazer a conta com a almofada e ambos chegávamos à conclusão que ainda eram possíveis “só mais cinco minutos!” e lá se ia o engano, o relógio, o milagre e os atrasos. Um dia passei a ter um telemóvel com alarme, e concedi finalmente a reforma aquele que um dia tinha sido outrora o meu despertador, mas que depois de tantas vezes ser agredido ou por socos de revolta ou por quedas ao chão – tinha-se livrado sempre do magnifico voo contra a parede, podia por isso ficar muito feliz – e merecia de facto paz e descanso – encontrei-o no outro dia a descansar num quarto cheio de coisas velhas, que os meus pais têm a mania de guardar tudo, a olhar para mim e a recordar-se das nossas conquistas e lutas contra a inocente, doce e frágil cama. Percebi que o telemóvel ainda era mais fácil de desligar e combater. Era pequenino, não continha aquela imponência do despertador. Era fácil dizer-lhe “cala-te” que ele obedecia silenciosamente. Então comecei a deixa-lo em cima da mesa, em cima da cadeira, perto da janelas, testei todos os sítios possíveis e impossíveis que me obrigassem a levantar para me livrar daquele ruído que conseguia ser mais enervante que o do despertador, talvez por vingança e para provar a sua qualidade em relação ao aparelho que se propunha a substituir, e acabava por já levantado abrir a janela e ir ao banho. Tenho que confessar que algumas vezes fui mais resistente que ele, e depois de me levantar, procura-lo às escuras pelos moveis do quarto e desliga-lo, voltei para a cama afim de deliciar-me com “só mais cinco minutos!”. Assim sendo, e rendendo-me à circunstância de que não fui feito para lutar com despertadores, alarmes, e telemóveis, pois por norma sou eu o vencedor, decidi arranjar um emprego só da parte da tarde, que me permite levantar à hora que decido, e fabricar eu sucessivos milagres de “só mais cinco minutos!”

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