7.5.07

FOTOGRAFIA VERDE-ÁGUA




Há uma imagem reflectida nesta fotografia que eu não conheço. Pelo menos não a reconheço. Lembro-me desses cabelos terem sido ruivos com bastantes ondulações. Mas não me lembro dessas rugas a saírem rasgadas desses olhos. Tenho a certeza que não existiam. Era ela? Ela não era assim. A imagem que eu conheço não é assim. Talvez não seja ela. Talvez essa imagem não seja ela. É de uma mulher, disso não tenho qualquer sombra de dúvida, mas não é a mesma mulher que eu conheço. A que eu conheço, tem um sorriso desenhado no meio da face. Os olhos estão iluminados por uma luz que quase encandeia quem passa e fazem corações bater à velocidade da própria luz. Os cabelos são brilhantes e parecem, movimentarem-se sozinhos. A maquilhagem é quase imperceptível. Quem olha com muita atenção até consegue descobrir um risco castanho à volta das pestanas inferiores e uma sombra bege muito esbatida na pálpebra. O rímel é praticamente inexistente e um blush quase se desfez. Um rosto assim, vivo, iluminado, brilhante, não precisa de maquilhagem. A pele á macia, suave. É uma pele de bebé tocado por uma inocência pura. Existe algo de muito saudável e sorridente neste rosto. Suponho que ela tenha sido manequim. Este rosto foi muitas vezes olhado, analisado, avaliado, admirado e desejado. Foi também muitas vezes fotografado. Esses olhos receberam muitos flashes. Quantas vezes eram tão fortes que quase se fechavam e era preciso uma grande concentração para se manterem abertos ao ritmo do fotógrafo, alternando com um sorriso que rasgava o rosto todo. Esse sorriso era tão aberto e profundo que quase se conseguia ver a alma. Era feliz. Era um rosto muito feliz. Um rosto que via desfilar nas passerelles. Um rosto que desfolhei muito nas revistas. Mas nessa boca que tantas gargalhadas deu, que tanto conversou, que tantas bocas beijou, não lhe conheço nenhuma que a tenha realmente amado. Penso que não foi um rosto amado. Foi desejado, muito desejado, mas nunca verdadeiramente amado. Num rosto amado não se desenham rugas a sair dos olhos. Num rosto amado as pálpebras não descaiem. Os lábios não ficam encarquilhados. Os olhos não se afundam em papos e olheiras movediças. Um rosto amado continua a brilhar toda a vida, porque existe um outro rosto que o olha com um olhar tão terno que não lhe consegue ver rugas, papos ou olheiras. E um rosto de solidão tem muitas rugas. Hoje olho essa imagem nesta fotografia e vejo-lhe uma sombra castanha escura que cobre toda a pálpebra. Vejo-lhe um risco grosso preto que delineia todo o olho. Existe um blush carregado que tenta disfarçar as maças do rosto descaídas. Mas não há tapa-olheiras que disfarce esses papos onde se escondem os olhos. Há uma mão que treme ao delinear um lápis sobre o contorno dos lábios. Talvez porque este contorno já não existe. Foi apagado e rasgado pelo mesmo tempo que rasgou esse rosto nas fotografias, nas revistas e que não se recorda das passerelles. E nesta fotografia de facto apenas existe este rosto. Ao seu lado não existe mais nenhum a olha-lo, a admira-lo em olhares ternos ou de desejo. É uma fotografia de solidão num rosto marcado pelo tempo e abandonado pela memória. Há apenas uma coisa que reconheço nesta imagem, os meus olhos. Continuam verdes. Um verde-água que nunca perdeu a esperança de ser feliz, mas que envelheceu e desaguou sozinho na solidão desta fotografia.

2 comentários:

Anónimo disse...

lindissimo este texto..mto bonito., mto água.

Denise disse...

Porque é no rosto que tudo fica, toda a nossa história, toda a nossa vida...
E não há maquilhagem que mude isso.

Beijinhos*