12.4.07

DEMASIADO TEMPO




Não sei o que hei-de fazer para que voltes para casa, Luís António. Hoje limpei a casa toda, até sacudi as almofadas do sofá, por causa das tuas alergias. Estás sempre a queixar-te delas. Eu sei que não sou perfeccionista em limpezas, mas sinceramente tu às vezes deves inventar pó, onde ele não existe. Só mesmo tu para te lembrares de fazer uma inspecção ao écran da televisão com a ponta do dedo. Como se os filmes alterassem a história e o assassino passasse de repente a herói só por causa de umas graminhas de pó. Eu também não me queixo das horas que tu passas deitado no sofá de comando na mão, pois não? Há homens que deixam crescer a unha do dedo mindinho, a ti cresceu-te um telecomando. Estou aqui sentada no sofá. Está frio. Parece que o comando nem funciona com os meus dedos. Deve ser do verniz. Hoje fui arranjar as unhas, Luís António. Estás sempre a queixar-te delas. Dizes que não cuido de mim e que tenho as unhas mal arranjadas e meias roídas. É porque eu nunca tenho tempo. Será que tu não percebes? Uma pessoa anda no dia a dia e nem se apercebe que não tem tempo para nada e um dia passou demasiado tempo e olha, fiquei com as mãos gretadas. No outro dia ainda tentei fazer-te uma festinha na cara quando vi que tinhas tirado a barda, mas disseste logo que te estava a arranhar. Também não são propriamente feitas de pedra pómos, que exagero. Está bem, têm alguns calos, estão secas, gretadas e com umas peles a sair. Mas eu trabalho o dia todo, não tenho tempo. E não me vou pôr a gastar dinheiro desnecessário em manicures que cobram uma fortuna e é um desperdício. Temos de juntar dinheiro para esses canais todos por cabo que tu mandaste instalar, não é? Eu sei que estou sempre, como tu dizes, com ciúmes da televisão, mas não achas que são canais a mais? Serão mesmo precisos 60 canais? Não sei o que de tão interessante vês tu na televisão, sinceramente. Mas para te provar que posso ser como as mulheres da televisão, comprei uma lingerie nova. Soutien vermelho, fio dental, meias e ligas. Não sei se me fica muito bem. Sinto o peito um bocado apertado mas realmente nunca o tinha visto tão cá em cima. Agora as meias é que me apertam um bocado as coxas, parece que faz aqui um papo. E o fio dental incomoda-me imenso, parece que o sinto dentro de mim. E não sei se me favorece lá muito por causa da celulite. Não sei se é de ser vermelho, mas parece que estes buracos no rabo ainda ficam maiores. Parece a casca das laranjas. Achas que é da cor? Eu bem disse à menina que devia ser cor-de-rosa, mas ela insistia que vermelho era mais sexy. Olha, não sei, desde que tu gostes é que interessa, afinal é por uma boa causa. Ainda pensei que passasses por cá esta noite. Até pus pratos de loiça à mesa e tudo. Andas sempre a queixar-te que só usamos pratos de plástico ou de papel, que esta noite decidi fazer-te a vontade. Mas é que esses vão logo para o lixo e não dão trabalho nenhum. É que eu nunca tenho tempo. Engraçado, encontrei uns pratos com umas bolinhas azuis e cor-de-rosa que a minha mãe nos ofereceu quando nos casámos. Nunca os tínhamos usado. Já foi há tanto tempo. Acho que passou demasiado tempo! A minha mãe disse logo que isto não ia durar muito, mas vês? Bem se enganou. Ela achava que no primeiro ano, tu te ias logo embora. Mas não foste. Achava ela que tu eras demais para mim e que eu não ia conseguir bem dar conta do recado. E eu provei-lhe que não. Provei-lhe que conseguia bem dar conta do recado e ao final destes anos todos ainda somos casados. Bem sei que estou um bocado gorda, que não há saia que me sirva, só visto calças e umas t-shirts XXL que compro na Praça de espanha quando tenho tempo. Também sei que nunca estou em casa, chego sempre depois da meia-noite e por norma já adormeceste de comando na mão. Mas oh Luís António, eu não sei porque é que te queixas tanto. Temos uma boa casa, um bom carro, nas ferias vais sempre viajar para fora, bem sei que nunca vou contigo porque não tenho tempo, já não tiro ferias à mais de 4 anos. Mas nunca faltou nada nesta casa e nunca passaste fome. Nunca deixei que te faltasse nada. Não tens razoes de queixa. Anda lá, volta para casa que estou a ficar cheia de frio, aqui sentada no sofá de fio dental vermelho escondido por debaixo da minha barriga. Anda lá para casa, para eu provar à minha mãe que dou conta do recado, que somos muito felizes e que não és demais para mim, apesar de ter já passado demasiado tempo.

2 comentários:

Denise disse...

Depois do que li só digo duas coisas:
Perfiro o preto ao vermelho;
A essa mulher não falta nada, a não ser amor.

Beijinhos*

Anónimo disse...

és fantastiko :)

aquele abraço, beto valles