27.6.07

NA PRATELEIRA

Hoje, vou ser forte. Hoje, não te vou telefonar, nem enviar sms’s desesperadas, do género “Vem, oh vem, oh por favor, oh vem”. Hoje não vou ver as horas de 10 em 10 segundos, a ver se já passou o tempo suficiente ou justificável para eu ter um ataque de nervos, e poder finalmente decretar que estás atrasado ou a ignorar-me. Hoje não vou fazer nada disso. Hoje não vou tirar a chave da porta, para que tu a possas abrir a qualquer momento com a tua chave, que eu te dei naquele dia à chuva, em que ficaste de vir cá ter e só me telefonaste 3 dias depois. Não meu amor, hoje não vou mandar sms’s a pedir que sintam pena de mim, a todas as minhas amigas. Nem vou rejeitar as chamadas delas, para não manter o telefone ocupado, para o caso de tu me quereres ligar. Hoje, vou-me levantar deste sofá, vou tomar um duche, esticar o cabelo, vestir aqueles jeans justos, pôr aquelas botas castanhas de camurça que me dão um andar de quem até tem a certeza de para onde vai, e até vou sair de casa. Não sei para onde vou, mas as botas hão-de levar-me a algum lado. E se bateres à minha porta, eu não vou estar. E se finalmente, depois de 5 meses, decidires usar a cópia da chave que te dei, caso esta não tenha enferrujado de cansaço, entras, sentas-te tu no sofá, e ficas tu à minha espera. Porque eu, não sei onde estarei, mas concerteza, não estarei sentada ao teu lado, à tua espera. E antes de sair, acho que vou guardar em caixas de papelão, todos os bonecos, bibelots e jarras que estão adormecidos nas prateleiras dos armários que distribuí pela casa. Vão todos para o lixo. Até aquele palhaço de porcelana que me compraste naquela feira, na qual nos rimos tanto e recordo como se tivesse sido ontem à noite. Foi a ultima vez que saímos juntos. Depois dessa noite devem ter partido os relógios todos, porque tu nunca mais tiveste tempo. A única coisa que vou deixar nas prateleiras é aquele relógio antigo da minha avó, para saber o quanto estás atrasado. E como o relógio é antigo, o teu atraso vai parecer maior ainda. Excepto isso, vai tudo para o lixo. Não quero nada nas prateleiras. Não quero nada à espera, disponível, à disposição, nas prateleiras. E como eu não sou nenhuma palhaça de cara pintada e chapéu bicudo de sorriso enigmático, essa noite da feira vai também para o lixo. Não quero que mais nada nesta casa, fique à espera. O acto de esperar é inútil, vazio. O tempo fica muito grande. As prateleiras parecem não terminar. Parecem-se quilómetros de filas de madeira em auto-estradas de espera. Alguém que espera, é alguém que não vive. Os minutos esperados, não existem. E se eu passar uma vida inteira à espera, não vivi. As prateleiras vazias vão parecer estranhas nos primeiros tempos. Mas nós habituamo-nos. Nós habituamo-nos a tudo. E quando me habituar ao vazio, já não vou sentir a tua falta. Gostava de te dizer tudo isto. Mas dizer-to, seria autorizar-me a quebrar a minha própria regra de não te telefonar. Se bem que eu devia avisar-te de que não vou mais esperar por ti. Talvez assim tu mudes de ideias e venhas a correr atrás de mim. Mas estas coisas não se avisam. Não se avisa uma guerra. Não se avisa que se vai chocar um avião contra uma torre. Não se avisa que se vai despejar uma casa, uma prateleira, um coração. Esvazia-se e pronto. É assim. E o elemento surpresa, é sempre muito mais emocionante, levado a sério, e mais fácil de aceitar. Que remédio tens tu, senão aceitar. Está a chover. Vou acabar por molhar o cabelo todo. Tenho noção de que é apenas uma desculpa para não sair e ficar aqui à tua espera, uma vez mais. Mas sou capaz de ficar doente e depois vou enviar-te 300 sms a espirrar de frio, e vou adoecer ainda mais porque tu não vais ter tempo para vir cuidar de mim, e eu vou afogar-me em pena de mim. Talvez seja melhor não sair hoje. E se eu não te enviar nenhuma sms és bem capaz de ficar zangado, e depois nunca mais me ligas. Acho que vou deixar os bonecos nas prateleiras só mais uma noite, faço-me de forte amanhã.

11 comentários:

Will disse...

Não tenho palavras Pedro... é difícil ler este texto sem reconhecer nele um pedacinho de nós.

Eu também já tive que me fazer de forte.

beleza de mulher disse...

não desesperes eu estou aqui me telefona lool

Plum disse...

Que toda a gente tivesse coragem para atirar o telemóvel pela janela!!!

T. disse...

Quantas e quantas vezes eu também penso, que vai ser a ultima vez! Que vou deixar de ser parvo, e deitar fora toda a tralha que habita na cabeça e no coração, mas acabo sempre por fazer o mesmo que acontece na história que escreves-te! mas pk???
fika bem =)

Martinha disse...

Por vezes é realmente necessário tentarmos ser fortes connosco. Principalmente com pessoas q nao merecem muito de nos.
;)

Pedro Eleutério disse...

Muito bom esse texto Pedro. Parabéns. Adorei a metáfora dos relógios, muito bem caçada. E ficou muito bem escrito.

Talvez o ser humano deva começar a aprender a viver com o passado e com as recordações. Não é preciso limpar a prateleira para seguir em frente... é só preciso ir acrescentando mais memórias a essa prateleira sem esquecer os bons momentos do passado.

Um abraço
Pedro.

Marco Fav disse...

Achei uma pena, tanta determinação para nada. Realista, é certo, mas não sou um homem lá muito realista. Eu até devia estar contente, pois deixar as pessoas à espera ocorre-me com frequência! E testar a paciência de uma mulher é um jogo perigoso! LOL

Conguitos disse...

Este post está algo de fantastico e termina com uma imagem que é extemamente importante.
Eu sou ansiosa, teimosa, chata e terminando muito insegura... insegurissima. É horrivel qd me acontece isto por vezes preferia não ter telemovel, carro, net ou qq outra forma de poder entrar em contacto.
Não posso humilhar-me mais e não o tenho feito o que me deixa bastante satisfeita lloll
beijokinhas e mais uma vez parabens

Anónimo disse...

Fantástico!!! Muito bom o texto.

Existe uma altura na vida em que todos somos forçados a mudar! Podemos adiar, mas não podemos nunca evitar!

Abraço.

Graduated Fool disse...

Muito bem escrito. É quase desesperante a leitura.

Como conheço estes sentimentos.

Pralaya disse...

Fazer de forte... parece que finalmente percebi o significado, e consegui. Não é assim tão dificil habituamo-nos a fazer de forte mesmo sem esquecer e sem retirar tudo das parteleiras...