29.6.07

O QUE FIZESTE AO "i"?


Quando eu era criança, bebia leite de vaca. Mas só no Verão. A viagem era enorme e quente, mas a chegada era sempre apetitosa. Eu era muito pequenino e tu eras sempre tão grande, que tinha que me esticar todo para te dar um beijo. Lembro-me do arranhar da tua barba branca. Lembro-me das tuas mãos grandes e de tirares sempre o boné despenteado quando chegavas a casa. Claro que tudo isto foi antes de te deitarem e amarrarem nessa cama. Antes até de te destruírem a roda que estava logo à entrada de casa. Quando havia feiras, enquanto tinhas loiça para vender, ninguém vendia. Eras o melhor oleiro das redondezas. Depois das feiras passava-se muito tempo até te sentares na roda novamente. Uns dias antes da próxima, lembravas-te e sentavas-te. Colocavas o barro na parte de cima da roda, molhavas as mãos e era ver-te a dar com os pés à roda e a saírem pratos, tachos, jarros e todo o tipo de loiça que as minhas tias e a minha avó, sem dormir, metiam e tiravam dum forno que cozia a ferver. A minha mãe enrolava as mãos muito pequeninas em panos, para não se queimar. Agora, no sítio da roda, está lá uma máquina de lavar roupa. Também anda à roda mas não faz tachos de barro nem migas de pão com açorda. Porque isso, era no tempo em que íamos ter contigo ao casão e eu me sentava num banquinho a ver-te a ordinhar as vacas. Era uma habilidade como as tuas mãos se mexiam, fazendo o leite sair-lhes das tetas. Ias levar o leite à venda mas trazias sempre algum para casa, para eu beber à noite. Porque quando eu era criança bebia leite de vaca. O meu verão era o melhor de todos, porque era um verão alentejano. Tu não estavas lá muito por casa. Tinhas o gado, as tapadas e a loiça. Às vezes ficava a imaginar-te lá na tapada, a juntar o gado e a trazê-lo para o casão. As vacas obedeciam-te todas. Cada uma delas tinha um nome e eram muito bem tratadas. Por isso chegavas tarde para jantar, já as sopas de sarapatel arrefeciam na mesa. Oh Xico!!! Onde é que anda aquele hóme? Lá ia a minha avó buscar-te ao casão. O casão era assim uma espécie de recinto com portão, com algumas arrecadações. Numa delas guardou-se a roda. Ali está parada à espera das tuas mãos, dos teus pés e do teu barro. Uma noite, vinhas da tapada e foste atacado por um touro. Ficaste de cama. Foi a primeira vez, que me lembro de te ver em baixo. Aquele homem alto, grande e sempre tão forte estava de cama. Foi a primeira vez, mas não foi a última. Da última, tu já não te lembras, mas os teus olhos sempre muito brilhantes despediam-se. Já não tinhas a tapada, nem o gado, nem a roda, o que é que estavas cá a fazer, não era? Eu sei. Deitado nessa cama já não tinhas nada para fazer. Partiram-te a roda. Ficaste doente e quiseste ir-te embora. Os teus olhos sempre muito brilhantes. Oh filhe, tens mêmo os olhos do tê bisavô! E lá ia a minha avó. Mas eu nunca conheci o teu pai, não sei se é verdade. Olho-me ao espelho, e tento imaginar os olhos dele, para perceber se têm a minha cor. Castanho mel. Mel que quando chora fica muito cristalino, como o teus. Mas os teus já não vão mais olhar para mim, pois não? A última vez que me viste, não me reconheceste. E eu também não te reconheci. Porque aquele, não eras tu. Tu eras alto, grande, forte. Da última vez que te vi, já não tive de me esticar todo para te dar um beijo arranhado na barba branca. Em vez disso, tive de me baixar. Porque tu já não te mexias nessa cadeira, nem nessa cama. Agora a cama ficou vazia e compro um pacote de leite no pingo doce. Não o mesmo mas terei de me habituar a ele, não é? Tal como terei de me habituar à tua ausência. Porque quando eu era criança, bebia leite da vaca. Mas nunca mais vou beber, pois não avô?


(...ao meu avô Xico que partiu esta semana)

15 comentários:

Unknown disse...

Olá, como prometido vim "cuscar" os teus espaços. Desde já os meus sentimentos pela partida de uma pessoa que amas. Espero que ele esteja num local bem melhor do que aquele em que nos encontramos. Adorei a tua escrita, a intensidade e sinceridade. Continua! Ganhaste um leitor atento.
Abraços

Will disse...

Todos temos que enfrentar estas separações... são condição da nossa condição. Resta-nos enfrentá-las com coragem, fortalecidos por tudo aquilo que os que partem nos deixam coração.

Um grande abraço

vinte e dois disse...

A perda de uma pessoa que nos é querida requer de nós muita coragem. E é isso que tens que ganhar para enfrentar este momento. Um grande abraço para ti.

Anónimo disse...

Mais que um texto de saudade é um Belo texto. O teu Avô estará decerto orgulhoso e essa é a melhor homenagem que lhe poderias fazer.
Abraço.

LoiS disse...

Um grande abraço PP, que a saudade que sentes seja o perpetuar de uma memoria!

LoiS

beleza de mulher disse...

sinto muito pelo teu avô...

já experimentaste beber leite a sair na hora das tetas da vaca hummm é bom looool

Anónimo disse...

A vida nem sempre é como queremos, porém, a vida tem que ser assim.
O amor que sempre demonstras-te pelo teu avô terá sido a melhor prenda que ele poderá ter recebido. O facto de enfrentares este momento com tão nobres sentimentos e tão boas recordações, prova que amaste o teu avô como um neto deve de amar: com respeito, admiração e sinceridade! Muito bom o texto. Conseguiste emocionar-me . abraço!

Rama disse...

è doloroso perder assim alguem tao importante desde os nossos primeiro passinhos.. mas tem de se pensar que a vida é mesmo assim... ainda nao existe nenhum poção mágica para acbar com o sofrimento, a magoa, a saudade nem da vida eterna...

força contigo..
abraço grande

Graduated Fool disse...

Uma muito bonita homenagem a quem perdeste mas que, certamente, estará sempre contigo.

Um abraço.

Força!

Nuno Gonçalo disse...

Sei o que isso é... Abraço
P.S.: voltei de Roma... AMei

Marco Fav disse...

Um abraço... é tudo o que posso dar para reconfortar!

Conguitos disse...

esta quase a fazer uma no que tb perdi o meu. Entre diversas histórias que guardei fica a recordação e o valor da palavra familia que ele sempre quis incutir.
Preparados nunca etsamos e apenas me lembro de prometer aos meus primos que tudo iria correr bem e que ele viri para casa... infelizmente não veio como queriamos mas estará sempre guardao.
beijinhos de força

Phantom of the Opera disse...

A vida prega-nos estas partidas.

Abraço

Pralaya disse...

Adorei a forma como recordas o teu avô é bom termos as nossas boas recordações para nos relembrarmos das pessoas que são especiais e que já partiram. Um forte abraço e penso que deves apesar de estar triste devido aos factos estar um pouco feliz por teres conhecido uma pessoa tão especial para ti.
Um forte abraço.

Margaret disse...

leite, manteiga e queijo fresco artesanais...