23.7.07

O ALBERGUE




Olha, Gonçalo, se era para me fazeres isso, vais valia não me teres beijado nessa noite. Desculpa lá que te diga, mas é verdade. Sim, demos uns beijos e eu até gostei, mas não precisavas de me telefonar uma semana inteira e enviar-me mensagens escritas à sobremesa. Ainda me lembro num dos teus telefonemas de horas e horas, de a meio dizeres: “Pensei que me a meio da conversa me ias convidar para ir a tua casa!” E de facto convidei, uma semana depois. Era sexta à noite e não me apetecia a típica queca da one night stand. Apetecia-me conversar, jantar com alguém à minha frente e falar. Falar sobre o que quer que fosse, falar. Conversar, isso sim. Sentámo-nos nas almofadas encarnadas no chão, enquanto refrescávamos com vinho branco acompanhado com esparguete com cogumelos e ananás. Depois confessaste-me que ficaste em pânico por pensares que eu só comia comida vegetariana, e que comigo não irias conseguir sobreviver à mesa! Lembro-me de te dizer que no final do curso queria cantar jazz e antes de ouvirmos Billy Holiday, atirámo-nos para o sofá. Ali permanecemos o fim-de-semana todo, entre sumo de laranja, o canal Hollywood, algumas gargalhadas e umas cambalhotas para a frente e outras para trás. Nessa semana não nos vimos, e depois tu disseste que eu passei todo o fim-de-semana distante. Mas eu já estava distante desde que te conheci, quase impenetrável, mesmo depois de me teres penetrado. Não me queria envolver, e certamente não me queria magoar. Mas tu tinhas que me entupir o telefone com mensagens, não era Gonçalo? Mais uma semana e redimi-me. Era novamente sexta à noite, parece que este era o teu dia semanal de sorte Gonçalo, e convidei-te para irmos S. Jorge, ver a Madonna a esgrimir no 007. Claro que também convidei uma amiga minha, para o caso da coisa correr mal. Estamos a subir a Avenida, quando deslumbro a fumar um cigarro, um gorro branco em malha tricotada, com lábios carnudos e olhos grandes. Digo à Sandra: “Chega! Redimo-me! Este homem é um pão!” E assim, baixei as armas e dei-te a mão no escuro do cinema S. Jorge e vi-te sorrir. Percebeste que dei algum trabalho, mas que me tinhas conseguido conquistar, não foi Gonçalo? Só depois é que me explicaste que vivas com um amigo teu, e que ele era meio estranho. Eu ao início não percebi logo o que querias dizer com meio estranho. Entendi depois que ele devia estar apaixonado por ti, porque fazia cenas de ciúmes quando vinhas ter comigo, o que até achei alguma graça, ter uma bixinha embeiçada por ti. Se calhar, até gostava mais de ti, do que eu. Sim, Gonçalo, porque no início não era paixão, era... deixar-me ir numa conquista de lábios e voz carnuda. Mas quando me disseste que ele já tinha mandado dois ex-namorados para o hospital com hematomas nas pernas de tanto serem pontapeadas, confesso que comecei a sentir alguma preocupação. Eu que te imaginava a viver com um rapazinho de saltos altos aos gritos pela casa, furiosa por o macho ter arranjado namoro, agora o cenário pintava-se um pouco mais macabro. E quando soube que o ultimo ex-namorado, quando quis sair de casa e levar os seus pertences, ele chamou a policia e disse que era um ladrão a roubar-lhe móveis, aconselhei-te a arranjares casa o mais rápido possível e sair dali. Não me estava muito a apetecer começar a namorar com alguém que vivia com um psicopata, não sei se me estás a perceber. E não sabia eu, que me ias telefonar do Hospital com a perna direita com cobertura de hematomas, que ele mesmo tinha desenhado no meio da rua com as suas texanas. Imagino a figura de texanas a tentar equilibrar-se em cima do capot do teu carro, aos pulos como se de tratasse de um colchão e tivesse 4 anos. Ele dizia o quê Gonçalo? Qualquer coisa como: “Não vais namorar com essa pessoa! Vais namorar comigo! Vais namorar comigo! E vais! E vais! E vais! E sim! E sim! E sim!”? E não Gonçalo, não imaginava sequer quando me beijaste naquele outro dia, que te ia albergar em minha casa, a ti e toda a tua mobília, “enquanto não arranjas um sítio para viver!” Mas não foi preciso esperar muito, pois não Gonçalo? Porque no fim-de-semana seguinte, depois de me perguntares se eu aceitaria namorar à distância e eu ter respondido que não, foste a casa dos teus pais, e quando eu te esperava no domingo à noite, fizeste-me esperar um pouco mais. E como quem espera, desespera, ligo-te terça à noite, a perguntar o que se passa, porque não voltaste, e porque não sei nada de ti. Mas o teu silêncio, não seria uma novidade, não é Gonçalo? Disseste-me que ainda essa semana virias a Lisboa, e eu percebi pela escolha do verbo, que não ias voltar. Mas se não ias voltar, porque é que me beijaste naquela primeira noite, Gonçalo? Conquistaste-me para depois me abandonares? Vieste buscar as tuas coisas, ofereceste-me o teu quadro preto, “é para te lembrares de mim!”, e disseste que à distância não era impossível, que eu podia ir ter contigo ao fim de semana, e tu virias ver-me a Lisboa, sempre que pudesses. Ainda me disseste que assim que chegasses a casa me ligavas. E depois Gonçalo? Que aconteceu depois? Como é que termina esta história? Diz-me! O que queres que escreva a seguir? Que passei 3 meses a ligar-te e tu ou não atendias, ou se por engano atendias, desligavas em 3 segundos, antes de dizer “já te ligo”, como me fizeste no meu dia de aniversário? Que nunca sei se um dia me vais entrar por essa porta, porque afinal nunca me devolveste as minhas chaves. Nem as chaves, nem aquele cachecol preto enorme que eu adoro. Ainda te enrolas a ele, no Inverno? Fica-te tão bem. Sabes? Antes de levares as tuas coisas, tirei-te aquele cd da Billy Holiday e uma tesoura. Não sei para que quero a tesoura, mas sempre adorei tesouras. Talvez seja porque há sempre um dia, em que tenho de cortar com o passado e deixar de o perseguir, porque pior do que querer falar com alguém, é querer falar com alguém que não quer falar comigo. Olha Gonçalo, comigo está tudo bem, obrigado. Conheci um grande amigo pianista e acho que vou mesmo cantar jazz. Mas, sabes, podias-me ter avisado de tudo isto antes de me teres beijado nessa outra primeira noite.

18 comentários:

Martinha disse...

Ui... Esse beijo teve grandes consequências, pelo que li na crónica.
Fico contente por também sentires as palavras do meu último desabafo como eu. :)

Um beijo *

Ácido Cloridrix HCL disse...

Espactaculo amigo ,,,, um abraço bem forte,,,, HCL

Rama disse...

Gostei do post (como sempre).. mas ha uma frase que nao me sai da cabeça.. 'pior do que querer falar com alguém, é querer falar com alguém que não quer falar comigo'.. diz muito esta frase...

fica bem
abraço

AFSC disse...

O teu blog está fantástico. Boas palavras, naturalidade, sentimento no que escreves..enfim parabéns pela forma clara e emotiva com que fazes este blog.

Um big abraço, tudo de bom*

Will disse...

É... existem beijos perigosos.

Conguitos disse...

O que um beijo é capaz de fazer. É isto que não entendo...O uso enquanto necessidade e depois... Homens????

Pralaya disse...

Sempre por incrivel que pareça inicia tudo pelo carnal... é óbvio que nunca se fica apaixonado logo... Mas os beijos são muito perigosos, assim como baixar as defesas imediantamente...

Plum disse...

Ter sempre uma tesoura à mão para cortar com um passado que não nos deixa viver um presente e sonhar com um futuro!
Todos os actos têm uma consequência!Excelente!!!***

Dhyana disse...

Apesar dos apesares, conseguiste escrever o texto com uma certa ironia e uma boa dose se "sarcasmo". Adorei! Adorei porque se calhar até te magoaram, mas pareces-me uma pessoa forte, daqueles que dão a volta por cima com determinação de um felino.
Beijos..., adorei ler-te.

Papoila disse...

Tu escreves lindamente! Uma crónica fabulosa. O que faz um beijo...
Beijo

Marco Fav disse...

Tadita da tua amiga Sandra, que foi ao cinema segurar a vela!
A personagem Gonçalo é um iman de violência subliminar: leva uns a desatarem aos pontapés e, outros, a guardarem tesouras sem saberem ainda o que fazer com elas... perigoso! Não corram com tesouras pessoal!

VIAJANTE DO MAR disse...

Obrigado por teres passado no meu cantinho...
Adorei o que li por aqui.

Vou voltar mais vezes!!

Abraços

Unknown disse...

Está mesmo bonito este teu "escrito"... era tão melhor se não se o amor não nos fizesse sofrer como, pelos vistos, neste caso te fez... Aquele abraço. E parece que tens sina para isto homem! :)

Anónimo disse...

Lindo!


Abraço

Nini disse...

O que um simples beijo pode fazer...
Ui, só recordações na minha cabeça !

aquelabruxa disse...

lindo!
gosto muito! uma bela crónica lisboeta. o vinho branco, o espaguete com ananás e cogumelos e as almofadas encarnadas no chão é tão lisboeta que nem sei explicar!
e os lábios carnudos do gonçalo, muito apetitosos! e a "bicha"ciumenta de saltos altos os gritos pela casa... lol, que afinal tem texanas... e não sei se a história é verdadeira, mas que parece mesmo típica parece!

Margaret disse...

pena que os relacionamentos modernos sejam mais ao menos assim... tudo começa com a promessa de uma bonita relação para depois acabaer em silêncios que não se podem explicar.

Anónimo disse...

nao faças nascer um sorriso dizendo AMO.T para logo a seguir fazeres correr uma lagrima dizendo... ESKECE.M

os teus textos sao simplesmente lindos!
(deves)e és concertexa um excelente ser humano, pois so alguem com muito carma na vida e sentimentos pode escrever algo tao belo

aquele abraço
beto valles