26.7.09

PEDRO, O COMBOIO E AS PERNAS DA SENHORA

Um comboio em movimento tem por fim chegar ao seu destino. Os corpos cansados desejam abandoná-lo, na não saudade do regresso. O comboio pára. Duas horas depois o comboio pára. Vejo o revisor quase arrancar a alavanca de emergência. O comboio pára. A viagem é como que suspensa e o ambiente ganha uma cor que não se entende. Os corpos cansados levantam-se repentinamente. As caras coladas às janelas anseiam perceber o motivo desta súbita paragem. Os corpos cansados, agitam-se. Braços gesticulam pelas carruagens. As caras ganham expressões de preocupação. As vozes não se percebem. O comboio está parado. Levanto-me. Saio do Comboio. Um aglomerado de pessoas, gesticulando culpados, não me deixa perceber o motivo pelo qual estamos parados. “A senhora caiu”, ouço uma voz explicar. O meu cérebro é abordado por memórias de histórias de pessoas que caíram debaixo do comboio. Mas esta não é uma história arquivada nas gavetas da minha memória. Esta história é aqui e agora. É uma tarde de Verão de muito calor. O comboio está parado. As horas passam. Faltava apenas uma hora para chegar a casa. Sinto-me egoísta com estes pensamentos. “A culpa foi do revisor, mandou o comboio partir, a senhora ainda não tinha descido”, ouço vindo de uma outra voz. Mas onde estava a senhora? Quem é esta senhora? A minha curiosidade pega-me nas pernas e avanço até perto da fita que nos impede chegar até aquele corpo. Vejo uma cabeça que se diz cheia de sede. Alguém lhe arranja uma garrafa de água. As suas mãos recebem a água. Aquela cabeça de aparentemente 40 anos, que se mostra calma, não olha para traz e espera pacientemente por aquilo que os próximos minutos lhe tragam. Espera também que ambulância seja o seu próximo transporte. Aquelas mãos pacientes que bebem água, não têm a consciência da imagem que vejo daqui de cima. Olho para o seu corpo. Entre as suas pernas e os seus pés falta um pequeno espaço. Os seus pés estão um pouco mais à frente. Fecho os olhos. Não quero ver. A imagem é desconexa. Não consigo fixar a imagem no meu cérebro. Uns pés fora do sítio. Afasto-me. Pego no telemóvel e aviso que vou chegar algumas horas atrasado. O comboio está parado. As pernas duma senhora estão por baixo. Os braços continuam a gesticular culpados. As vozes adivinham situações. A senhora ia a sair do comboio? A senhora ia a entrar no comboio? Se ela está de costas, ela caiu a sair do comboio. A mala dela está perto dela. As vozes concluem que aquelas pernas que agora estão por baixo do comboio, iam a sair. Saiu antes? Saiu depois? Quem viu? Quem não viu? Afasto-me. Entro novamente no comboio parado. Sento-me no meu lugar. Eu não quero saber do culpado. Eu não quero saber do calor que está. Eu não quero saber que estamos aqui há duas horas num comboio parado. Eu até já nem quero chegar a casa. Eu apenas quero esquecer aquelas pernas e aqueles pés fora do sítio. Porque eu, quando o comboio voltar ao seu movimento, vou chegar ao meu destino, com as minhas pernas, mas sei nas próximas viagens, não voltarei a esquecer aqueles pés que não chegaram ao seu destino.

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