25.7.09

PEDRO E A NOSSA NOITE DE NATAL COM OS BOMBEIROS


A tua avó morreu. É Natal e a tua avó morreu. Seis anos depois regresso a esse Alentejo. Na mesa, as rabanadas, os sonhos e a morte da tua avó. Essa avó morta que ainda há seis anos atrás nos dava biscoitos enquanto brincávamos aos Bombeiros no seu quintal. Os miúdos brincam. Os miúdos rasgam papéis de embrulho numa alegria tímida e controlada por um sentimento de vazio. Nós já não somos miúdos. Eu tenho dezoito anos. A família divide-se entre um velório e o final de uma ceia de Natal. Nós ficamos com os miúdos a ver filmes. Bissexualidade é o nosso tema nocturno. Não sei como aterra na conversa, mas desperta toda a tua curiosidade. Digo-te que ser bissexual é brincar ao Natal todos os dias. É ser o pai Natal e é ser a criança. É ter os dois lados que se complementam. Tens catorze anos, uma namorada e uma curiosidade fascinante. Fazes-me tantas perguntas que esquecemos as casas a arder na televisão e os miúdos a brincarem aos Bombeiros como nós, há seis anos atrás. Não fomos ao velório, ficamos esta noite de Natal a falar sobre corpos, sobre corpos de homens. Parto o Bolo-rei. Encontro uma fava. Digo-te que é sorte e que esta fatia é tua. Esta noite de Natal ainda não terminou. Ainda não te ofereci o meu presente. O velório também não terminou, mas a minha mãe rasga um intervalo para vir a casa dos meus avós. Diz-me que esta noite é melhor tu dormires no meu quarto, os teus pais vão passar a noite com a tua avó. Olhas para mim. Sei o que estás a pensar. Imaginas-nos certamente a brincar novamente aos Bombeiros. Os Bombeiros chegaram. Foi a minha mãe que os chamou. Um papel de embrulho atirado para a lareira ateou fogo. A casa da minha tia estava a arder. A casa cheira a filhoses. Comemos Bolo-Rei e não dizemos nada aos miúdos. Não contamos do Velório, da casa a arder, nem dos nossos olhos que se despedem do Pai Natal e ardem num fogo Natalício em palavras quentes, curiosas e codificadas. Desligamos a luz do quarto. Sinto o peso dos cobertores sobre o meu corpo. Sinto a tua mão. A tua mão quente pesquisa a minha carne. Beijamo-nos. Arrancamos o pijama um ao outro, numa necessidade faminta de nos enroscarmos. Não existem Bombeiros capazes de apagar o fogo desta cama. É aqui que te ofereço o meu presente. É aqui que te desejo Feliz Natal. No dia seguinte ao almoço, a minha avó diz qualquer coisa sobre gargalhadas a noite inteira no meu quarto. Sorrimos um olhar cúmplice de silêncio secreto. É o dia de Natal. É o funeral da tua avó. É este cemitério que substitui filmes familiares numa tarde de Domingo. E enquanto o caixão desce, olhamos um para o outro e ainda sentindo a memória do calor dos nossos corpos, um no outro, sentindo também o silêncio do segredo que dez anos depois perdura. Tenho vinte e oito anos. Sento-me nessa mesa de Natal, onde um dia me olhaste de soslaio. Não me olhas. O silêncio. Outros miúdos rasgam presentes de Natal, brincam aos Bombeiros e a casa ainda cheira a filhoses. E apesar de não olhares para de mim, sinto ainda a memória daquela que foi a nossa noite de Natal.

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