10.9.06

GARDNER - ALGUEM QUE CUIDA DAS FLORES



Estavas perto da estátua do cauteleiro. Esse homem que parece ter parado no tempo e no espaço na persistência de realizar um sonho. Parecia que estavas à minha espera e no entanto nunca me tinhas visto. Perguntaste-me já não sei o quê em inglês e ficámos a conversar ali a noite toda. Convidaste-me para jantar no dia seguinte. E ali estás tu, no mesmo banco de jardim, perto do cauteleiro, novamente à minha espera, com uma túnica indiana castanha que faz sobressair o brilho da tua pele negra. Caminhamos no bairro alto à procura de um restaurante que chame por nós, pois explicas-me que não somos nós que escolhemos as coisas, mas sim elas que nos escolhem a nós. Só basta estar atentos. É o vermelho que chama por nós. Sentamo-nos no “le rouge”. O tecto rouge e os budas relaxam-me. Lembro-me de ver “O pequeno Buda” e todos os livros sobre o Budismo que comprei. Pedes ao empregado para por favor acender a vela do Buda junto da nossa mesa. Sinto um mistério que me envolve. Envolve-me a mim, porque te envolve a ti. O teu olhar negro enigmático de um sorriso de criança. E o mistério não é apenas por estar dentro de um todo vermelho e um cheiro de incenso. Eu que sempre que preciso de relaxar queimo três paus de incenso e concentro-me na luz de uma vela. Dizes-me que o empregado tem um sotaque estranho. Digo-te que deve ser brasileiro. Dizes-me que não. Deve ser argentino. Quando o empregado se aproxima da mesa, depois de te confirmar que é argentino, dizes-lhe para ligar à família, pois nessa noite está a acontecer um terramoto. “Como sabes tu tudo isso se é a primeira vez que estás em Portugal?” Explicas-me que o sonhaste e no dia seguinte ouço no jornal da tarde que de facto houve um terramoto na Argentina. Os sonhos. Os teus sonhos premonitórios. Eu que apenas sonho com a minha morte desde criança e com o pânico que me enterrem em vida numa caixão. Depois explicas-me que já várias vezes tentaste visitar Portugal, mas acabaste por ter sempre de adiar. Mas este ano, viajas com uma amiga e ela, que ficou em Barcelona, diz-te para vires a Lisboa, pois terias que conhecer um rapaz de cabelo comprido e barba. E de facto reconheço essa imagem no espelho da casa de banho do restaurante quando penso que estou diante de alguém muito especial. Depois explicas-me que ainda nos Estados Unidos começaste a sonhar numa língua, que não me recordo o nome, mas falada no tempo de Jesus Cristo. Um dia deste por ti a escrever, e a tua mão, sem tu saberes, escrevia caracteres nessa outra língua. Quiseste perceber o que se passava e encomendaste on-line um dicionário dessa língua. Abres a encomenda, e um engano enviou-te a Bíblia, e não me lembro muito bem como, mas destacava-se uma parte dedicada a S. Pedro. Jesus Cristo, a imagem física que os católicos têm dele, pois explicas-me que é errada já que ele só poderia ser negro devido ao sítio onde viveu, e o destaque do próprio S. Pedro na Bíblia, explicam o nosso primeiro encontro. Questiono-me se serão tudo grandes coincidências ou se existirá alguma lógica por detrás de tudo isto. Falo-te da minha escrita, lês algumas das minhas palavras, porque apesar de não falares português, entendes muito bem. Falo-te dos meus sonhos, do prazer de estar em palco e de tudo aquilo que ainda tenho cá dentro para transmitir. Então explicas-me que cuidas de plantas, ajudas flores a crescerem, com as mensagens que te transmitem ou nos sonhos ou por vezes sem sequer estares a dormir. Gardner - alguém que cuida das flores. E neste momento a flor devo ser eu, porque me falas do momento justo para as coisas acontecerem. Para eu não desesperar, não desanimar, nem desistir dos meus sonhos, pois quando todas as condições estiverem reunidas, acontece. É só preciso esperar, e estar atento. Nessa noite decidimos dormir no Hotel onde te hospedaste, esse hotel com nome de príncipe. O recepcionista não me quer deixar entrar sem que eu deixe o meu B.I. Não percebes e quase te irritas com ele. E percebo que os anjos também se irritam. Antes disso, vamos ao quarto onde me hospedei à dois dias quando cheguei do Porto, essa pensão com nome de anjo, buscar as minhas coisas. Antes de virarmos a esquina para a pensão dizes-me que ontem, umas horas antes de me conheceres, tinhas estado ali. E desgraçadamente uma pomba tinha defecado em cima de ti. Agora percebes a sorte da premonição. Lá diz o povo que pisar dejectos dá sorte. E eles lá sabem. Nessa noite, com um outro cheiro, depois de um banho à luz de velas e muito incenso, adormecemos embalados por Maria João e Mário Laginha, a minha fadinha. No dia seguinte, quando entro na pensão, recebo em papel “I asked for you!” É o rapaz da recepção que com um sorriso cúmplice me entrega. Quando chegas, antes de entrares no meu quarto, reparas que a porta ao lado está aberta e dizes qualquer coisa como, se te instalasses ali estarias ao meu lado, ao que eu respondo, que tu já estás ao meu lado. Digo-te que agora compreendo que és de facto um anjo enviado de Deus, e respondes-me que não tens asas, são demasiado pesadas. No dia seguinte telefonas-me e explicas-me que tens de voltar mais cedo para São Francisco e não te podes despedir. Não entendo. Fico triste. Ao final da tarde pergunto pelo teu nome no Hotel mas já não estás. Nem me consegui despedir deste anjo. Entro na pensão triste. Estou triste e nem sequer o rapaz da recepção me sorri. Quando nem o rapaz da recepção nos sorri, sabemos que estamos sozinhos. Tu partiste. Mesmo antes de entrar no meu quarto olho para a porta ao lado mas está fechada. Penso “E se…?” “Nãaaa” Abro a minha porta e no chão, mesmo aos meus pés tenho uma rosa vermelha e um bilhete. Choro enquanto leio “Thank you for the sweet memories”. O abrir da porta do meu quarto interrompe-me o choro, e por detrás da porta a tua cabeça diz que quando eu acabar de chorar posso ir ter contigo ao quarto ao lado. Choro e rio de emoção enquanto te abraço e adoro a surpresa. Depois percebo que o rapaz da recepção foi teu cúmplice e apenas disfarçava. Quando descemos para jantar rimo-nos os três. Na manhã seguinte despedimo-nos como nos filmes, entre muitas lágrimas e na certeza que não nos voltaremos a ver. Antes de sair da pensão com as minhas malas olho a parede de entrada e tem um quadro com um anjo negro com umas asas enormes brancas. É altura de perceber que nada é por acaso. Dois dias depois, já estou no Porto a fazer as malas para mudar de casa e de cidade, quando o telefone com a tua voz me diz que afinal ainda estás em Barcelona e no dia seguinte estarás no Porto numa pensão com nome de Anjo, à minha espera. Descubro a pensão e deixo no teu quarto uma folha azul clara com as minhas palavras e um ramo de rosas brancas. Não te deixo dormir ali. Em minha casa mostro-te o meu mundo. Apontas para uma das minhas fotos de criança num relvado imenso da Alemanha com o meu pai e dizes-me para lhe enviar essa foto. Talvez assim haja uma maior aproximação. Antes de te despedires, dizes-me que queres voltar a ver-me. Convidas-me para desta vez ir eu conhecer o teu mundo. Ofereces-me uma viagem aos Estados Unidos, e três semanas e quinze horas depois estou em S. Francisco Bay a olhar o oceano pacífico, very far away from home. Digo-te que o meu número da sorte é o 8, mas tu dizes que é o 4. Olhamos para o céu e a voar vejo as 8 gaivotas do filme de Hitchcock a voar. Digo-te que são 8. Dizes-me que são 4 mais 4. Olho para um muro na praia e estranhamente very far away from home vejo escrito o meu sobrenome. E sinto as boas-vindas! Perderam a minha mala no aeroporto, e só cinco dias depois é devolvida. Explicas-me que de facto nada é por acaso, e que não existem coincidências. Tudo tem um motivo para acontecer, só resta descobrir qual. E já agora para eu não me prender tanto às coisas materiais. Depois de um banho que me preparas com óleos e pétalas de rosa, durmo finalmente na tua pele negra luzidia. Passeio-me pelo park, around the lake, perto dos cavalos e dos patos. Ali sinto paz. Existe um lago enorme perfeito, dum lado, um parque natural, do outro, prédios enormes. Todas as pessoas sorriem. Fazem yoga pelo parque. Jogging. Parecem-me tão felizes, tão em paz. E de tudo o que vi, e vivi, trago para home essa paz, o teu sorriso e a esperança de que tudo isto não tenha sido um sonho, e de um dia poder voltar a abraçar essa tua pele negra Luzidia.

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