4.5.07

GUERRA VESTUÁRIA




Não sou uma pessoa organizada. Dou-me mal com essa organização. Discuti com ela quando era adolescente e nunca mais fizemos as pazes. Mas não foi sempre assim. Quando era criança, criticava muito a minha irmã, por o quarto dela ser uma verdadeira caserna em tempo de guerra. A cama estava sempre por fazer. A noite deitava-se nos lençóis amarrotados e às vezes nem lhes puxava as orelhas. No roupeiro estava tinha explodido uma bomba vestuária. Enquanto eu, tinha o meu roupeiro organizado por casacos, camisas, e depois calças e cada secção estava alinhada por cores, abrir as portas do armário da minha irmã era uma aventura. Um dia cedi-me a viver essa aventura e desvendei essas portas. Assim que as abro caem-me logo duas camisolas na cara e deparo-me com umas jardineiras quase a escorregar dum cabide. Na roupa que está pendurada encontro: várias calças no mesmo cabide, saias aos gritos umas com as outras, camisas com as mangas ainda dobradas, enrugadas e emparelhadas com casacos de Inverno, um cabide só com um cinto e um outro com uns collants pendurados. Em cima d prateleira: pilhas de camisolas misturadas com calças e saias enrugadas, dobradas, do avesso, com moedas e lenços nos bolsos, por cima e por baixo das almofadas, cobertores, um urso de peluche, umas folhas rasgadas de um caderno e uns sapatos. No quarto havia ainda mais um parque de estacionamento vestuário: uma cadeira. Na cadeira que ficava ao lado da porta, por debaixo do espelho, morava uma família de t-shirts, meias, jeans e saias que partilhavam do movimento Ocupa. Um dia ouço a minha irmã furiosa com a minha mãe porque queria vestir aquela saia e não a encontrava em lado nenhum e não estava pronta a ser vestida. A minha mãe, paciente e angelical como sempre, procurou no cesto de roupa para passar a ferro, procurou no varão de roupa a secar, no cesto de roupa para lavar e nada. Achou que a saia tinha pedido independência, se tinha juntado a um par de jeans, e juntos numa união de facto, partido para bem longe, quem sabe para um roupeiro dividido por secções. Quando desistiu de procurar nos sítios possíveis, a minha mãe decidiu aventurar-se a contra o inimigo e participar na guerra montada no roupeiro da minha irmã. Claro que está que, amarrotada, engelhada e qual testemunha sobrevivente escondida por debaixo duma pilha de roupa e entalada numas t-shirts, a minha mãe salva a bendita saia. Anos mais tarde, eu quando comecei a viver sozinho, para matar a solidão de chegar a uma casa vazia, em silencio e sem nada para fazer, fui deixando uma ou outra camisola fora do sitio, para sentir que algo esperava por mim ao fim do dia naquela sala. Assim já não me sentia tão sozinho e tinha com que ocupar o tempo. A pouco e pouco tornei-me adepto da cadeira ao lado da porta, na prateleira do roupeiro moram t-shirts e camisolas viradas do avesso, bonés, meias, almofadas, um cobertor, umas calças que já não uso e umas correntes. Os pendurados ainda sobrevivem por ordem. Mas nas gavetas as meias nenhuma delas está dobrada, nem os boxers. Não passo a ferro. Despedi-o. As t-shirts, dobro-as bem dobradas, assim como toalhões de banho, toalhas e panos da loiça. Os jeans saiem do estendal directamente para as pernas e as camisas, agora é moda usarem-se engelhadas. Tornei-me num autentico caos, onde as gavetas coleccionam cheques, papeis, canetas, cartas, Cds, moedas, lenços, uma faca, um cigarro esquecido, isqueiros sem gaz, agendas, mapas, preservativos, entre outros objectos que me vão surpreendendo cada vez que as abro. Mas, em armários e gavetas, encontro sempre tudo o que quero na minha casa, nem que seja duas semanas depois. Não sei se o quarto da minha irmã também sofreu uma transformação tão radical como o meu. Tenho de lá ir abrir as portas a ver se ela agora organiza as blusas e os vestidos por comprimentos e cores e se declarou guerra definitiva e se o roupeiro se parece com o fundo de uma maquina de lavar de roupa.

8 comentários:

Nuno Gonçalo disse...

Brutal mesmo, a maneira como tu escreves é fenomenal. Relatas coisas tão banais do dia-a-dia mas com uma sinceridade, simplicidade, exactidão e até uma profundidade que não costuma estar associada a estes temas. Parabéns pelo blog ;)

SoNosCredita disse...

tenho duas primas que, nisso, são o oposto.
é mesmo uma questão de personalidade!

neste caso, com o tempo, alteraste o teu comportamento... de facto, quando se entra nesse esquema de 'deixar andar' é difícil sair dele. ;)

T. disse...

Eis uma coisa que temos em comum: a desarrumação tardia. Há uns ano eu também era o posto da minha irmã, enquanto o quarto dela estava de pernas para o ar, o meu estava sempre arruadinho. De há uns tempos para cá sou eu que deixo a cama por fazer semana inteira, roupa espalhada no guarda fatos, na cama, no puff, e cds e livros por todo o lado.
Gostei do texto. =)

Denise disse...

Ui...como me revejo nas tuas palavras.
A cadeira está mesmo ao lado da porta, cheia de saias e calças em cima. O roupeiro está um caos.
Quem sabe quando eu me mudar daqui a uns meses, e for morar sozinha não resolva começar a arrumar as coisas... As pessoas por vezes modificam-se.*

Anónimo disse...

com essas guerras estamos nós bem né?..(parece que anda p'ráí tudo a dizer que me ama.. e eu sei que é verdade, pois também os amo com igual intensidade)e a ti, nem sabes a saudade que tenho de te abraçar mto, mto, mto.
1 beijo enorme e continua a escrever assim, dessa maneira tão fluida e agradável my love que j'adore á la folie, smak! smak!

GK disse...

Bate ante de entrar... LOL
Boa semana.

Pralaya disse...

Nunca consegui ter a minha roupa assim tão dessarumada... penso que o meu grande problema e nunca ter conseguido até hoje ter algo que seja na minha vida fora do lugar...
Tenho de experimentar, quem sabe é isso que me falta...

Plum disse...

o que para alguns é desorganização, para outros é a harmonia total!!!Eu gosto de uma (des)arrumação harmoniosa!!!
Abraços!*