18.5.07

ORA, BEM, BEM...!


Eles não hão-de descobrir onde é que o dinheiro está escondido. Agora está atrás do quadro da casa de jantar, que a Fernanda apanhou-o no pote do açúcar. O que é que eles têm de andar a mexer nas minhas coisas? Já são todos casados! Vão lá para as casas deles. Também o que é para aqui vêm fazer? Os miúdos vão para o quarto acender-me o televisor e gastar-me luz e filhas deles não devem comer em casa, sempre a mexerem-me no pão com chouriço e a dizerem: “Oh ‘vó, então quando é que paga um leitão assado à gente?” Ora, bem bem, comam batatas cozidas com ovo, que o bacalhau está caro. Nem sei para que vêm todos para aqui. Gastam-me a lenha toda, a fazerem a fogueira lá fora para se aquecerem ao lume a noite toda. A torneira só deita uma pinguinha de água? Deixá-la! Também não é preciso mais para lavar a loiça toda. Ora, bem bem, estava eu aqui tão bem sozinha sentada na cozinha, tinham que para aqui vir. Oh Pedro, vai lá ver o que é que as miúdas andam a fazer na casa de jantar? Já partiram alguma coisa! Elas que não sejam como o teu primo António Carlos, cada vez que vem de Andorra vão todos para o quintal correr e partem-me as couves todas ou então abre-me as coelheiras e é ver os coelhos a fugir pelo quintal a fora. Quem é que os há-de apanhar com esta muleta? Eu já não consigo andar. Pobre de mim, desgraçada, para aqui sozinha metida nesta casa o dia todo sem poder ir a lado nenhum e ninguém me vem ver. Até me custa levantar desta cadeira. Estou cada vez pior. Já nem lavar-me sozinha consigo. Mas também não é preciso ser como a Zirinha. Mas para que é que ela toma banho todos os dias, Fernanda? Ela estará suja? Vocês lá cidade têm com cada uma! Eu lá quero comer bacalhau com notas, prefiro umas batatinhas cozinhas com azeite e vinagre. Não deites esse bife que sobrou ao lixo, que eu como-o amanhã. Não, não é preciso teres o aquecedor ligado. Não se incomodem comigo, eu não quero dar trabalho. Eu não tenho frio. Já disse ao Augusto para parar de trazer lenha lá para a minha casa e acender o fogão. Estou muito bem com esta mantinha, não faz mal ser Janeiro e eu viver numa casinha de pedra no norte. E ele que nem pense mandar arranjar as frestas das janelas, que os empreiteiros estão muito caros e passam é o dia todo a conversar e a beber cervejas e não fazem nada. Eu até mandei embora a miúda que ia lá a casa passar as noites. Estava sempre com o aquecedor e o televisor ligados, a gastar-me muita luz. Não é preciso ter lá ninguém a cuidar de mim, que eu trato-me muito bem sozinha. Não preciso de ninguém. Ora, bem bem, tenho sessenta e sete anos, vai para sessenta e oito, não me vão por em nenhum lar, que eu não vou. Estou muito bem em minha casa. E não é preciso andar a ir todos os meses para as casas de cada um. O Fernando já disse que não me quer lá em casa, a Micas anda lá sempre em discussões, que tive de me pôr à janela a cantar as ave-marias. A Fernanda quer que eu tome banho todos os dias e eu não estou para isso, e o Augusto fica logo todo chateado quando eu digo que não quero comer nada ou quando lhe conto o que se passou em casa do Maneca, põe-se logo a dizer que não quer saber o que se passa em casa dos outros. Eu não quero dar trabalho e estou muito bem sozinha em minha casa. Já escondi o dinheiro na terrina, que eles não hão-de descobri-lo, a senhora Maria já gritou de lá de fora a ver se eu estava bem e se estou viva. Ora, bem bem, estou viva, estou. E quando me for embora, vão-se arrepender todos de terem sido tão ruins para a vossa mãe e para a vossa avó. Eu que não faço mal a ninguém, desde que me deixem aqui a comer esta côdeasinha de broa, e não me peçam para pagar leitões, nem me venham para aqui gastar lenha. Eu fico aqui com a minha muleta. Podre de mim, desgraçada que já nem andar consigo, sozinha nesta casa, ninguém me liga nenhuma, passa-se a semana toda, que ninguém me vem cá visitar. Ora, bem bem!

(à minha falecida avó)

8 comentários:

Martinha disse...

Gostei imenso da crónica. Fez-me lembrar a minha avó, que ainda está viva, mas tinha algumas parecenças com a tua.
:)
Bom fim-de-semana.

Anónimo disse...

O meu avô também era assim, tal e qual. Já cá não está, mas sinto a falta dele como sentes da tua avó, certamente!
Gostava das côdeas e aproveitava tudo, eu lembro-me! Eu cá achava o exagero da poupança! Boas recordações...

Bjnhs * bom fim de semana

Anónimo disse...

Não sei como cheguei até aqui... mas sei que voltarei, com toda a certeza!
Li algumas das tuas crónicas, encantaram-me pelos assuntos abordados, pela forma como estão redigidas e pelo correcto português escrito.
Um beijo e bom fim-de-semana.

Denise disse...

Fizeste-me lembrar não a minha avó, mas a minha mãe... =S

peter_pina disse...

martinha: obrgd

pekenina:mas nao, nao sinto falta desta minha avó, apesar de a ter retratado! mas sao outras conversas..ah nao consigo comentar o teu blog..blokeia...

nefertiti: bem vinda! fika mais um bokadinhu

denise: amiga, a tua mãe?!

beijinhu

p.p.

peter_pina disse...

ah martinha, nao consigo mm publikar o coment.k xatice! era isto:
sabes, nao é triste, é assim, as pessoas so fikam na nossa vida ate fazer sentido, e dp nao faz sentido nenhum, e nao é triste, é assim! sim, nao tens obrigaçao de coisa nenhuma, nem de ir atras nem de inventar assunto pra manter uma conversa! é assim!

Pralaya disse...

Retrato fantasticos das nossas avós e avôs, gente com raça :)

Nuno Gonçalo disse...

Meu Deus eu quando for velho vou ser muito, mas muito chato...
Ai de quem exagerar na preocupação o me quiser impedir de fazer algo. Tá tramado :p
Abraço