3.5.07

SÓ MAIS UM BILHETINHO




Vou a casa a meio da tarde buscar já não me lembro o quê e encontro uma carta na caixa do correio. Mesmo antes de sair de casa leio-a. Numa letra muito miudinha toda torta consigo decirar a tua apresentação, as músicas que eu ouço, os sítios que eu frequento, a escola que frequento e até os meus horários. Dizes que temos muita coisa em comum nesta vida e só me pedes para me conheceres pessoalmente. Muita coisa em comum, não temos concerteza porque eu não faço o género de entrar na vida das pessoas que não conheço, sem sequer pedir autorização. Claro que esta carta me assusta. Caminho na rua e olho para trás e para todos os lados no receio de uma perseguição. Imagino alguém louco com um andar estranho escondido atrás dum carro a caminhar devagar, a escrever num bloquinho de notas rasgado, a caminhar devagar enquanto me persegue. Vê lá se não tropeças em alguma coisa e cais no meio do chão e dás um bocadinho nas vistas durante a tua discreta perseguição. À noite, quando chego a casa, depois de trancar portas e janelas, sento-me no sofá e releio a tua carta. Portanto, neste momento existe alguém que após uma árdua investigação, ou por amizade a Sherlock Holmes, sabe quase tudo sobre mim, e quer estar comigo pessoalmente. Sinto-me completamente num filme de sábado à noite, daqueles que no intervalo nos leva a ir a correr à casa de banho, passando pela cozinha para encher os braços de bolachas e sumos, para não perdermos nem uma pitada da segunda parte enquanto por distracção e emoção mordemos o dedo e trincamos a língua, com uma bolacha na mão. Dois dias depois chego a casa e sinto-te a invadires cada vez mais a minha vida e o meu espaço. Deixaste-me um bilhete, agora mesmo por debaixo da porta, com o teu número de telefone e a pedires para te ligar e maçar um encontro contigo. Ou seja, estiveste dentro do meu prédio, à frente da porta de minha casa, e parece que até bateste à porta e por isso deixaste o bilhete. Sorte a tua eu não estar em casa a essa hora, pois a cozinha fica mesmo em frente à porta de entrada e eu tinha comprado à relativamente pouco tempo um faqueiro de cozinha com quatro facas enormes. Quase sinto o teu cheiro. Olho a porta de casa e imagino-te ali do outro lado. Apenas uma placa de madeira nos separava. Quase que estiveste em minha casa e sinto a tua presença a invadir-me o pensamento, o tempo, o espaço e a pele. Tomo um banho de água a ferver que me limpa a tua existência. Acho que já estás a ir longe demais e resolvo enfrentar a tua taradice directamente. Sejas quem fores não me vais continuar a assustar e a soprar no meu ouvido durante o sono. Com o meu número em modo confidencial e ligo-te para o telemóvel para averiguar que coisas tão interessantes temos nós em comum. Atende uma voz frágil, assustada que a tremer a única coisa que me pede é um café numa esplanada para me conhecer pessoalmente. Pede-me uma oportunidade de me fazer feliz e quase que se atreve a fazer-me uma declaração de amor enquanto eu grito que a única coisa que quero saber é quem és e como raio tens conhecimento da minha existência neste mundo e com todos os pormenores sobre mim. Dizes-me que me explicas tudo pessoalmente enquanto eu te faço entender que isso jamais irá acontecer, mesmo antes de desligar o telefone. Não aguento ficar em casa. Imagino-te a bateres-me à porta dentro de vinte minutos, se é que não estás já a subir pelo elevador por teres vindo a caminho durante o telefonema. Saio de casa. Caminho sem direcção a nada nem a lado nenhum. Como é que eu me vou ver livre de alguém que eu nem sequer sei quem é? A tua voz anda à volta da minha cabeça. É como uma gravação virtual que rodeia o meu crânio e não me deixa pensar. Acho mesmo que deves ser doente para quase me pedires em namoro depois de me perseguires e me deixares catas à porta. Eu não sei quem tu és, entendes? E sinceramente já nem quero saber. Apenas quero que tires essa voz da minha cabeça e nunca mais passes pelo meu prédio de papel e caneta na mão. Já que tens tanto jeito para escreveres bilhetinhos, escreve um ti com a frase “Lembrar-me todos os dias de esquecer que esta pessoa existe!” Um dia estou em casa e começo a juntar as peças do puzzle. Lembro-me da Nádia me ter dito que tinha visto o meu ex-namorado com um enfermeiro com um ar muito estranho chamado André. Lembro-me de um destes dias o meu ex-namorado me ter telefonado de um número que não era o dele. Revejo a lista das últimas chamadas recebidas no telemóvel e ali está o número. As pistas estão quase todas encontradas. É preciso verificar os dados. Ponho o telefone no confidencial e ligo para esse número, rezando para que ninguém atenda e para ouvir o nome na gravação. Alguém atende. É preciso manter a calma e levar o plano até ao fim? Boa tarde! Este não é o telefone do André. Sim, mas o meu filho não está, foi para o Hospital. Ligo uma segunda vez para ter a certeza. Vai para a caixa postal. Olá, ligou para o André, neste momento não posso atender. E ainda bem, porque neste momento partia-te era a cara. É a mesma voz. A voz frágil e assustada. Olho o bilhete que tirei debaixo da porta e é evidente meu caro Watson o número coincide. Ou seja, o Sherlock – Romeu dos bilhetinhos está relacionado com o meu ex-namorado. Decido levar a investigação até ao fim e telefono ao meu ex-namorado. Faço-lhe um relatório pormenorizado de todos os acontecimentos, que ele conclui com: Não precisas de ter medo, ele não faz mal a ninguém. Isto depois de ele me explicar que tiveram um caso, mas que não deu, e agora ele mexe-lhe nas suas coisas, agendas, telefone, e gavetas pessoais afim de investigar a sua vida e agora decidiu conhecer e namorar com todas as pessoas com quem teve alguma espécie de relação. Ao que parece no dia em que o pai me atendeu o telemóvel, tinha-se tentado suicidar, e pelos vistos não era a primeira tentativa. Se ainda partilham apartamento, aconselho o meu ex-namorado a ver-se livre dessa pessoa que me parece completamente perturbada. Um dia estou lá em casa a conversar como meu ex-namorado e aparece o tal do André. Uma figurinha baixinha com uma cara muito estranha que rapidamente o chama à cozinha, saindo a correr para ir comprar leite. Ainda lhe reconheço a voz frágil no telefonema a seguir, no: Porque não me avisaste que ele estava aqui? Que vergonha. Bem, eu é que sinto vergonha de estar no meio deste disparate todo e vou para casa. Esqueço o André, as perseguições, a voz frágil, os bilhetinhos, o Sherlock, o Watson e o Romeu. Mas parece que deixaste de escrever bilhetinhos, pois no outro dia ninguém conseguiu perceber quando encontraram o teu corpo frio e sem expressão deitado no chão com alguns frascos de comprimidos como decoração. Parece que desta vez conseguiste mesmo André, podias era ter deixado só mais um bilhetinho escrito numa voz frágil e assustada que nunca ninguém percebeu que precisava de ajuda.




(Espero que agora tenhas encontrado a tua paz André)

3 comentários:

Denise disse...

Paz é tudo o que lhe desejo, numa voz não tão frágil como a que ele tinha, mas que pede alguma ajuda.

Beijinhos*

peter_pina disse...

tb eu lhe desejei...

escrevi esta cronica no dia em k por acaso encontrei alguem k me falou do andré....e passados anos veio-m tudo a cabeça novamente no + infimo detalhe....

Nuno Gonçalo disse...

Estas tuas crónicas deixam-me sempre a pensar...
Nem sei bem o que dizer, fico assim sem palavras.
E olha que não é normal...
Abraço