4.5.07

UMA ESMOLA À CEGUINHA!




Estava tão bem na cama e já me veio pôr aqui. Uma esmola à ceguinha! Eles passam mas não são capazes de deixar uma esmola à ceguinha. Pelo menos podiam pôr uma moedinha das pequeninas, a ver se lá para o meio-dia já dá para comer uma sopinha ali no café do Jaime. Uma esmola à ceguinha. Olha que com o calor que está não me apetecia nada comer uma sopa quente. Mas com estas moeditas não dá para muito mais. Estas pessoas realmente são muito fonas. Também o que é que lhes custa? Que diferença é que lhes faz uma moedita de um euro no salário? Esta coisa do euro é que foi coisa boa. As pessoas não fazem as contas e agora dão-nos uma moeda de um euro a achar que estão uma de cem escudos, ou cinquenta cêntimos, a achar que estão a dar cinquenta escudos. Palermas. Quem ajuda a ceguinha? Mas com este calor nem sequer saem de casa. Devem ficar estendidas ou penduradas em ares condicionados das melhores marcas enquanto eu fico o dia todo a fritar nesta cadeira. O dia todo não. Das 10h às 18h que o meu filho vem-me cá pôr e cá buscar – eu que nem queria, mas o meu filho obriga-me a vir para aqui pedir, uma esmola à ceguinha, diz que toda a gente tem que ter uma profissão e a minha é esta - e ao meio-dia vou ali ao Jaime comer uma sopita. Às vezes com muita sorte, uma alminha caridosa lá me paga a sopita e poupo umas moedinhas. Sim que pelo menos as moedinhas que trago no bolso para a sopita que sejam para mim de vez em quando. Antigamente era mais fácil ficar com umas moeditas para mim, porque estendia a mão e guardava as que queria. Mas agora o meu filho arranjou-me esta caixinha com um buraquito, uma espécie de mealheiro com asas que fica preso ao meu pescoço e à cadeira, para não mo roubarem, e tenho que declarar ao meu filho, que diz que é a minha contribuição para a renda da casa e para a sopa que como à noite, as moedas todas que lá depositam, que nem consigo abrir isto. Alguém auxilia a ceguinha! E isto está bem amarrado, contra mim e contra os ladrões. Que uma vez, e o meu filho não queria acreditar, tinha um chapéu no chão e ouvi o dia todo a tilintar moedas, aquilo já devia estar cheio, e passou um moço a rir-se e a cantar, cheirava a vinho que tresandava, pôs-se para aí a contar as moedas, disse que me estava a fazer um favor, e no fim só me disse: Eh velha tás rica tu! Ainda lhe perguntei várias vezes quantas moedas é que tinha, chamei por ele, mas quando ouvi umas meninas a rirem-se é que me apercebi que devia estar a falar sozinha. Por causa disso é que o meu filho arranjou este mealheiro e o amarrou a mim e à cadeira, que é para não pensarem em levá-lo. Assim se tentarem roubá-lo têm de me levar a mim e à cadeira como brinde de três em um. Quem faz o favor de auxiliar a ceguinha? Ele nunca acreditou que eu tinha sido roubada, ainda hoje acha que eu é que fiquei com as moedas todas e não lhe disse. Mas eu só fiquei com duas ou três, que no fim até as lá pus e não fiquei com nada para mim. Devia era ter ficado com as moedinhas todas, a ver se um dia destes alugo um quartito para mim e não tenho que o ouvir aos gritos à noite depois de me dar uma sopa fria e me mandar para o meu quarto, esta velha, esta velha, já estou farto desta velha sempre aqui em casa a cirandar parece um fantasma, não se pode ter paz em casa, um dia destes meto-te num lar e nunca mais ouves falar de mim! Olha, era um favor que ele me fazia, pelo menos no lar, davam-me banho todos os dias, comia sopa quentinha e não me mandavam para o meu quarto aos gritos para eu fingir muito sossegadinha que não existo enquanto ouço os gemidos duma flausina qualquer que depois de tomar banho se vai logo embora. Essas pelo menos têm direito a tomar banho quando lhes apetece e não têm de estar o dia todo amarradas a uma cadeira a fritar com um mealheiro no colo. Uma moedinha à ceguinha! Isto agora também é só estrangeiros, já nem se ouve falar português. E estes estrangeiros não dão moedas à gente. Uma esmola à ceguinha! Um dia destes farto-me de ser pedinte, de estar amarrada a uma cadeira com um mealheiro amarrado, da sopa fria, dos gritos do meu filho e dos gemidos das flausinas, rebento o mealheiro que mais valia ser uma porca de barro dava-me menos trabalho, e em vez de estar para aqui a fritar ao sol o dia todo, uma esmola à ceguinha, alugo um quarto perto da praia e vou o dia todo para ao pé do mar. Já devem ser seis da tarde, já me vou embora, que já lá vem o meu filho que me obriga a estar aqui, para buscar e desamarrar a uma esmola à ceguinha. Não gosto nada de o ver com a barba por fazer.

3 comentários:

Nuno Gonçalo disse...

Pois realmente este texto tem muito que se lhe diga. Vou começar pelo princípio, o que é sempre giro. Os velhos (termo carinhoso) são muito mal tratados. As pessoas não têm paciência (eu não sou nenhum santo, também não tenho muita, mas quando reparo mudo logo XD). 70% dos ceguinhos das esmolas só são cegos do olho....... Não são cegos. Até porque uma vez vi um que dava pouco nas vistas a escrever um cartaz que dizia ajude o ceguinho. :S E outros que ficam a olhar para as saias das meninas.... :X
abraço

Denise disse...

Parece-me é que essa ceguinha não é lá muito cega... Posso estar errada, mas...

Beijinhos ensonados mas é...!*

Pralaya disse...

Fantástico, adorei o final da história em que descobrimos que de cega ela não têm nada.