Já passava dos quarenta, usava óculos “fundo de garrafa” e tinha o cabelo muito curtinho. Costumava fazer a limpeza todas as semanas lá no atelier e na casa da “Senhora”, e acabava sempre por me contar a sua vida e me pôr a par dos últimos episódios da “Senhora”. Contou-me um dia que a filha queria ir para a Faculdade mas que o marido não deixava. Ele achava que as mulheres deviam era ficar em casa. Contou-me que ele lhe batia e que um dia a obrigou a ir à chuva às bombas de gasolina, comprar-lhe cigarros. E que no final da noite, depois de a insultar, de lhe bater e de dizer à miúda: “um dia ponho a tua mãe a render na via norte”, se deitava e dizia: “vá, vira-te para mim”. E não adiantava ela dizer: “não Carlos, não me apetece”, porque ele dizia logo: “mas apetece-me a mim, vira-te”. E chorava quando me contava dos pontapés nas costas enquanto ela esfregava o chão da cozinha. Um dia trouxe biscoitos para a cadela que a “Senhora” tinha encontrado no meio da rua perdida e com os bigodes queimados. Mas que a “Senhora”, agora nunca lhe dava comida e a cadela estava cada vez mais magra e pulava de alegria quando via os biscoitos. Então um dia comprou “arroz para os cães”, daquele muito miudinho em promoção no mini preço. E cozeu-o para a cadela. Encontrou um pedaço de bacon perdido no frigorífico e misturou no arroz para lhe dar um sabor. Mas a “Senhora” disse logo: “Deixe aí estar o arroz, fica pra o jantar logo à noite!” E ela mal podia acreditar. Tal como não acreditava no que os seus olhos viam quando limpavam a prateleira dos catorze pares de ténis, dez de sandálias, sete botas e dezassete pares de sapatos. Tal como não acreditava quando arrumava as camisolas e encontrava uma ainda com a etiqueta de cartão a dizer o preço. E também não acreditava naquele preço. Contou-me que no dia da passagem de ano a meio da discussão o Carlos lhe disse:”tens uma hora p’ra desapareceres, tu e a tua filha”. E ela assim fez. Guardou o máximo de roupa e tralha que conseguiu num saco, ligou ao irmão e apanhou um táxi coma pequena Vânia. Uns meses depois conseguiu juntar dinheiro para alugar uma casa e saiu de casa do irmão. Mas tinha medo de andar na rua porque o Carlos tinha uma vez ligado para o atelier a perguntar por ela e dizia que a matava se a visse com alguém. Ela caminhava assustada na rua, sempre a olhar para trás, com medo de estar a ser perseguida. Falava-me com alegria da sua nova casa. E da saboneteira azul que tinha comprado nos “trezentos”. Tinha-me contado uns dias antes que queria lavar a máquina de lavar roupa da “Senhora”, mas não havia detergente para a máquina. E um dia entrou com um ar muito estranho e disse-me:”Não vai acreditar menino! Hoje cheguei e a roupa estava toda lavada! E eu perguntei: já compraram detergente para a máquina de lavar roupa? E a filha da “Senhora” respondeu-me: Não! Pusemos detergente da loiça!” Foi quando eu dei uma gargalhada e ela riu-se comigo! “Não acho isto normal menino! Está sempre a comprar roupa e sapatos novos! No outro dia comprou umas calças de ganga daqueles costureiros italianos que devem de ser irmãos e doutro Mosque-qualquer coisa! E depois ouvi-a a falar ao telefone a perguntar às amigas se não tinham os livros de escola das filhas dos anos anteriores para emprestarem às suas filhas!” E eu olhava para aquela mulher a contar a vida da “Senhora” e via que o contraste era absurdo. Ali estava ela feliz por se ter conseguido livrar do Carlos, e contente com a sua saboneteira azul nova dos “trezentos”. E a “Senhora” comprava “Dolce and Gabana” e “Moschino” enquanto comia um croquete o dia todo. Duas vidas completamente diferentes e uma não conseguia compreender a outra. Então ela disse-me que a sua Vânia havia de ir para a Faculdade nem que ela se matasse a trabalhar. E eu fiquei tão feliz por ela. Um dia, já eu não trabalhava ali, contaram-me que ela tinha deixado a sua casa nova e tinha voltado para o Carlos. Parece que ele tinha tido um problema nos pulmões e na garganta por causa de tanto cigarro e ela depois de o ir visitar a primeira vez ao Hospital foi com ele para casa. E eu lembrava-me daquela senhora a dizer-me enquanto chorava: ”Sabe menino, é o único homem que conheço. O único com quem dormi na minha vida. Nunca conheci outro homem, e só o tenho a ele”.
(um beijinho à Sra. Dª Aurora)
10 comentários:
Olá Pedro! A tua crónica retrata na perfeição várias realidades: a violência doméstica, o trabalho árduo, a honestidade, mas também, o novo-riquismo ou a hipocrisia, como lhe quiseres chamar. Mais do que isso retrata os opostos que compõem esta nossa sociedade...
Gostei muito! Parabéns!
Gostei desta tua crónica do quotidiano. Há tantas Auroras e tantas "Senhoras" ...
Um beijinho
Levou tempo para passar por aqui mas vim e vi como prometido.
Quanto à cróncia... Infelizmente são realidades que ainda acontecem. Mas gostei de ler.
acontece muito mesmo...
é triste que as pessoas vítimas de violência doméstica voltem para a pessoa que as maltrata, e acontece tantas vezes...
Também é triste que as pessoas não saibam fazer uma gestão equilibrada do dinheiro.
Parabéns pela crónica.
Muito boa esta crónica. Está muito bem escrita e descrita.
Abraço
Pedro
Boa crónica, bela escrita.
Só te digo uma coisa, leve eu escadas ou passe a ferro, seja empregada ou patroa, o primeiro gajo a encostar-me a mão em cima, ou foge rapidamente ou se arrepende de ter nascido.
Era o que faltava!!!
Não são mulheres, são vegetais...!
Beijinhos
Está muito bonita esta história. Consigo perfeitamente ver a situação: são personagens que todos nós conhecemos e que retrataste na perfeição.
By the way, não percebi porque te zangaste no comment que me deixaste.
Abraço
Duro, real, triste. Há aquela esperança e, ao mesmo tempo, o perder da mesma.
Infelizmente, há por aí muitas "senhoras" mas mais infelizmente ainda, muitas Auroras.
Abraço para ti e se um dia vires a D.Aurora dá-lhe um apertado.
Enviar um comentário