27.4.07

BERDINHEU, BERDINHEU


Quem é que te disse que podias vestir esse vestido e ires-te embora? Perguntaste-me se eu concordava, por acaso? Vestiste o vestido, desceste as escadas e foste embora. Assim, sem mais nem menos. Vestiste, não. Chamaste-me para te ajudar a vesti-lo. Aperto os inúmeros botões pequeninos do corpete enquanto vejo as minhas lágrimas na cauda da saia. Cresceste. Cresceste e vais-te embora. Quando eu chegar à sexta à noite o pai já estará a dormir, e ficarei sozinho na cozinha a falar com a mãe, porque tu não foste sair à noite com as tuas amigas, tu já não vais voltar a rir-te e a contar as peripécias da noite, e ao sábado de manhã enquanto os pais foram trabalhar, a casa fica mergulhada num silêncio, e entro no teu quarto e em vez de te ver a dormir ou a ver televisão, embrulhada em ursos, vou-me sentar na tua cama estática e saber que todos aqueles bonecos que moram em cima do teu guarda-fato sentem a tua falta. Até pareces uma mulher, com esses saltos e essa maquilhagem. Mas não és, ouviste? Portanto, tira lá esse vestido, põe a t-shirt e os calções e vamos subir a ribanceira de triciclo com a palavra mágica que tu inventaste para ele subir mais depressa: “berdinheu, berdinheu”! Vejo-te a descer essas escadas e vens tão linda, mas não és tu. Essa não és tu. Tu não desces as escadas de vestido de noiva para te ires embora. Não. Tu, como dizias, metias uma t-shirt na mochila e ias fugir para viver numa casa bem velhinha à beira rio, porque me tinhas perdido a bota-botilde e eu estava triste. Triste estou agora porque não quero que te vás embora. Não podes fingir para mim que ainda és menina e que corres atrás de mim com a bengala do avô a dizeres que me queres bater? Vamos outra vez deixar a mãe furiosa com as nossas guerras. Vamos tirar as almofadas todas do sofá e armar uma tenda. Anda, vamos operar os bonecos todos com tintura de iodo para a mãe nos voltar a encontrar todos sujos envolvidos em ligaduras e pomadas. Vamos outra vez dar aquele pijama de bebé à vizinha da frente embrulhado com muito jeitinho num jornal. E se eu disser: “berdinheu, berdinheu”, vens? Anda, o triciclo, as bicicletas, o periquito e o tareco estão prontos. Porque é que estas a colocar a aliança no dedo dele, a dizer o nome dele e a dizer sim? As lágrimas caem-me, agora nas minhas calças. Porque é que vais fazer isso? É porque eu me fui embora? É porque eu fui estudar para fora, e já não estava lá? Foi por isso que tu decidiste também ir embora? Eu volto! Prometo que volto. Vamos voltar os dois, ligamos o vídeo no concerto da Tina Turner e ficamos a noite toda a cantar e a dançar, a ver qual dos dois consegue transpirar mais do que ela. Deixa-me ir pular para cima da tua cama enquanto tu gritas “oh mãe olha ele, oh mãe, oh mãe!” Tens a certeza que não vens? Estás a ver como o casamento não resultou? Eu bem te estava a dizer para ficares no quarto a brincar às escondidas comigo, em vez disso preferiste esconder-te noutra casa, assim é complicado eu encontrar-te. Anda lá dizer “berdinheu, berdinheu” comigo e vais ver que já nem te lembras nem do casamento, nem desse parvalhão que não sabe de certeza que tu tens uma teoria de evolução muito mais avançada. Disseste-me, “um dia vão-te dizer, sabias que o homem descende do rato? E tu vais dizer que sim, que sabias, que foi a tua irmã que te disse”. E disseste, e tens razão, o Darwin não percebia nada do assunto, o homem descende do rato e eu sempre descendi de ti. Sempre te admirei, sempre te invejei, e se calhar sempre soube que um dia te ia perder. Tens a certeza que te queres casar outra vez? Porque não vamos os dois procurar a bota-botilde e viver para uma casinha bem velhinha? Temos pão com nutela, não precisamos de mais nada. Eu não te obrigo a beber o leite todo com nesquick, se não quiseres não bebes. Já vi que não vens. Por isso olho-te agora com outro vestido, abraço-te e digo-te “gosto muito de ti, sei que agora vais ser muito feliz”. Não sei se me ouviste, mas espero bem que tenhas ouvido, senão vou ter de te ir buscar no triciclo a dizer “berdinheu, berdinheu” e depois nunca mais te deixo ir embora. Vá lá, tira lá esse vestido e vamos para o sótão brincar à Heidi depois do pai nos ter obrigado a arrumar o sótão todo. Vem dizer “oh mãe olha ele, oh mãe, oh mãe”. Olha, ou então eu vou indo para a casa bem velhinha e ponho lá uma janela redonda como a da Heidi e fico à tua espera. E quando te cansares de ser casada, diz-me que eu vou-te buscar no triciclo a dizer “berdinheu, berdinheu”. Porque afinal a mãe não sabe, mas eu ainda não tirei a carta com trinta anos porque este triciclo leva-nos para todo o lado, basta dizer “berdinheu, berdinheu” como tu me ensinaste.



à minha irmã

5 comentários:

Martinha disse...

Gostei imenso da tua crónica.
Escreves muito bem. Gosto do teu blog.
;)

Denise disse...

Está mesmo bonito o texto.
Provavelmente o triciclo vai ter de ficar guardado e ela vai mesmo ser muito feliz desta vez...
O tempo passa, as pessoas crescem...e resulta nisto...

Quando for grande também me quero casar!*

T. disse...

Gostei muito do texto! Também tenho uma irmã e sei que um dia ela também vai querer juntar os trapinhos, e eu, apesar de ficar contente com a felicidade dela, vou sentir muita saudade destes tempos em que trocamos confissões, implicamos um com o outro, etc...
(Ok, agora viera-me as lágrimas aos olhos...)

Parabéns, o texto está muito bom!
E obrigado pelos comentarios que deixas-te no meu blog. =)

peter_pina disse...

obrgd plos vossos comentarios...realmente este texto fez-me chorar...

p.p.

Nuno Gonçalo disse...

Pois, realmente quando penso que vou deixar de ver a minha irmã em breve. Agora que já trabalha, que já tem o seu mestrado... só falta mesmo o namorado, o noivo, o marido. E depois? Fico eu e os meus pais, até que eu me dÊ na telha e me vá embora também. Deixando os coitados dos meus pais, tristes e sós na casa enorme, de repente tão vazia. Tão escura...Tão longe de nós. Nós tão longe deles...
:(