13.4.07

BISCOITOS ENTALADOS DA LENINHA




Fui! Já não sou. Isso já foi há muito tempo! Não me lembro do Whispers, nem do Ad Lib. Esses tempos já passaram. As camisinhas aos quadrados e os sapatinhos de vela com berloques ficaram numa prateleira que já não é a minha. Eu sempre fui muito rebelde. Nunca dava só um beijo, dava dois. Só mesmo pra implicar. Ficavam todas passadas quando lhe procurava a cara com a boca uma segunda vez, não tás bem a ver. Os meus amigos bem insistiam e as mães, principalmente, para eu as tratar “tia”, mas tia é a tia Maria Teresa a quem toda a gente chama de Titi. Essa cena não tem nada a ver comigo. Não ouvia Júlio Iglesias, tocava guitarra e fui o primeiro a começar a fumar às escondidas no quarto, enquanto a minha mãe batia à porta.

Diogo, o menino deve tar a queimar alguma coisa. Tá um cheiro insuportável. Ouça, despachasse lá com isso, ‘tão cá os tios da herdade e a Leninha trouxe os biscoitos que o menino gosta.

Tava farto dos tios da herdade, que na verdade nem da família são, de ser mais um betinho queque da Lapa e de estudar em colégios particulares. Um dia passei-me da mona, levantei o dinheiro todo que o meu pai me punha na conta. Enfiei umas t-shirts pretas que tinha escondidas, debaixo da cama e uns biscoitos da Leninha, num saco e bazei. Dormi duas noites numa pensão na Praça da Figueira. Ou melhor, dormi uns dias porque à noite ia p’ro Bairro Alto beber cervejas e dormia o dia todo. Um dia, fiz directa, paguei a pensão, peguei nas minhas cenas e comprei uma mota. Corri o país todo. Ficava em pensões, dormia na praia, no rio, conheci gente bem bacana. O dinheiro foi-se acabando. Já só comia hamburguers, salsichas ou atum enlatado, com pão. Comecei a poupar o dinheiro pra comer, em vez de o gastar em pensões. Passei a dormir por todo o lado. Dormi no chão enrolado em folhas de jornal ou em caixas de papelão, dormi em jardins, em escadas de prédios, passei frio, passei muito frio. Catei restos de comida no lixo. Passei um mau bocado. Até que fui parar a um prédio abandonado, onde uns tipos ficavam e deixaram-me lá abancar também. Vivi ali uns tempos. Era a minha casa. Comprava umas cervejas ou uns pacotes de vinho de mesa, acendia uma vela e tocava na minha guitarra. Às vezes fazíamos uma fogueira, por causa do frio e eles ficavam a ouvir-me tocar. Um dia acordei, estavam dois ou três à pancada por causa de uma lata de atum. Fui dar uma volta. Quando voltei um deles estava morto. Deitado no chão de olhos abertos e cheio de sangue. Os cabrões tinham-lhe posto a lata de atum vazia na mão p’ra gozar com o gajo. Nunca mais me vou esquecer daqueles olhos mortos a olharem p’ra mim. Foi quando me bateu uma luzinha na cabeça e percebi que não era aquilo que eu queria p’rà minha vida. E que se não fizesse alguma coisa, um dia destes quem estava morto a segurar numa lata de atum vazia, era eu. Depois fui uns tempos até à Holanda. Lá ouve-se boa música. Comecei a servir às mesas num bar e as vezes os tipos deixavam-me lá dormir atrás. Depois, comecei a falar com uns clientes que eram músicos. Um dia disse-lhes que tocava guitarra. Uma noite, combinamos umas cervejas, lá é que se bebe boa cerveja, e toquei-lhes umas musicas que tinha escrito enquanto dormia na rua. Convidaram-me para trabalhar com eles e já viajamos meio mundo em concertos. Até hoje ninguém sabe que sou português. Mas hoje liguei à minha mãe a dizer que tou cá. Vamos dar um concerto no Pavilhão Atlântico e vou assumir que nasci aqui. Ela atendeu, no seu tom distante com que me criou.

Ouça, não conheço nenhum Diogo.

Mas eu conheço. Conheço um puto que ela criou pra ser um betinho queque e que apesar de se ter convertido num dos melhores guitarristas internacionais, ainda não tem mãe. Tem uma tia. No lugar da mãe, puseram-lhe uma tia com voz de bagaço e cabelo armado. Vou continuar a tocar por este mundo fora, pode ser que encontre uma mãe. Pode não servir biscoitos da Leninha em pratos porcelana. Pode até servir atum entalado com pão. Mas será minha mãe.

5 comentários:

Denise disse...

Oh...desculpa-me por isso. actualizei o modelo do blog e perdi muitos dos contactos.
Mas já está novamente tudo no sitio.
Logo passo por cá para te ler...Agora...escolinha e descarregar frustrações no ombro da amiga...

Beijinhos*

Denise disse...

Quem é que não tem dentro de si o bichinho da rebeldia?! Quem é que não gostaria de abrir as suas asas e voar?
Até eu, que tenho 18 anos tenho vontade de fazer isso - agora mais que nunca. - Só ainda não tive oportunidade, mas sinto que falta pouco, muito pouco para ter de deixar de corresponder a espectativas e ideias que não são os meus.
Os pais querem o melhor para nós, mas o melhor para nós, nós é que sabemos o que é.

Gosto de gente que luta pela sua vida e pelos seus sonhos. Talvez por isso tenha adorado o texto.

Beijinhos*

antónio paiva disse...

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bem o meu obrigado pela tua simpática visita

e obrigado por me permitires conhecer este espaço com magníficas hitórias de vida

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Noite serena e bom fim-de-semana

T. disse...

olá! Obrigado pela visita que fizeste ao mmeu blog e pelos comentários que lá deixas-te! Fco contente por saber que gostas-te do que les-te!
Gostei muito do teu texto!
Abraço =)

miguel disse...

obrigado pelo coment feito no outro dia.. espero mesmo que aquilo que disseste se torne realidade.. mas quanto ao teu texto, esta muito explicito e infelizmente existem muitos como tu, por exe mundo fora..ja agora quando e esse cooncerto? ou ja foi? n percebi mt ben.. continua a postar.. e se kiseres da um salto pelo meu novo blog..

miguel-batista.blogspot.com

fica ben.. um abraço