14.4.07

O QUASE-ASSALTO OU A SAGA CONTINUA





Primeira parte:
Seriam umas dez da noite. Subia de sandálias a Rua Sá da Bandeira, a caminho de casa. Mesmo ao virar da esquina de Sá da Bandeira com Gonçalo Cristóvão, o típico: “tens uma moeda?” aproxima-se de mim. Junto aos meus calções, uma seringa nervosa olha-me. Eu olho-a. Olho a seringa. Olho as cicatrizes, crateras, e manchas desfeitas numa cara em que desfiguravam aqueles não-mais-que-vinte-anos. Olho novamente a seringa. Olho novamente as manchas desfiguradas. E de repente, sem pré-aviso, as sandálias iniciam uma corrida desenfreada que só termina no sofá de casa, deixando o monstrinho boquiaberto e sozinho em plena Sá da Bandeira.

Segunda parte:

Eram umas onze da noite. O ensaio havia terminado mais cedo, exactamente uma hora antes de terminar aquele dia de São Valentim. Decidi aproveitar esses restantes sessenta minutos finais, para os passar em Espinho junto da pessoa que um ano depois me iria iludir que não mantinha uma relação paralela durante o ultimo mês de namoro. Eu que era raro fumar, dado que nem sequer tinha tabaco comigo, peço um cigarro a uma colega que queria que eu cuspisse fogo num espectáculo, e desço as escadas. E lá vem ele o típico: “tens um cigarro?”, não, não tenho, cravei este lá em cima, mas se quiseres fica com ele e fuma-o, ‘tás a vontade. Não aceitou, e eu ainda pensei em lhe oferecer o BigMac que trazia embrulhado na mala, antes que se fizesse o típico “tens uma moeda”, mas reconheço as cicatrizes, crateras, e manchas desfeitas numa cara em que desfiguravam aqueles não-mais-que-vinte-anos. Viro costas e atravesso a rua em direcção à Estação de São Bento. Estou mesmo ao fundo de Sá da Bandeira quando, do outro lado da estrada sinto uma forte energia ou presença que me faz parar. Olho para trás, e ali está o monstrinho, do outro lado da estrada a olhar-me fixamente, a guardar a presa. Pisco os olhos e ele já está ao meu lado. A saga continua sem qualquer originalidade e a repetitiva e nervosa seringa espreita-me as pernas acompanhada do: dá-me tudo o que tens. Comentário gasto, e que considero pouco original, copiado ao pior filme de sábado à noite passado no Texas, mas que mais posso eu pedir a uma seringa que treme mais que uma picadora de hamburguers, que me faz esgaçar uma quase-gargalhada mas que se traduz num: eu não tenho nada, além de cento e setenta e dois escudos par o comboio para Espinho. Abro a carteira, tento comprovar-lhe a minha honestidade mostrando as esquecidas moedas ao fundo da carteira, interrompido por um: as notas, eu quero é ver notas. A quase-gargalhada começava a atrever-se numa expansão aventureira, acompanhada dum: eu não tenho notas, enquanto as minhas mãos se divertiam a atirar recibos do pingo doce que distraidamente ocupavam e substituíam o lugar das tais das eu-quero-é-ver-notas. O polegar e o indicador elevam os cento e setenta e dois escudos, acompanhados dum: tenho cento e setenta e dois escudos, é tudo o que tenho, queres? As manchas começam a alargar e a mudar de cor, e mesmo antes de se desfazerem em pó ou num líquido viscoso: eu vi aí o cartão Multibanco, vamos levantar dinheiro. Parece que o monstrinho estava mesmo determinado, e procurava soluções para me conseguir quase assaltar. A saga continua e o monstrinho ataca novamente. Mil escudos, só mil escudos, ok? Era dia catorze, estávamos exactamente a meio do mês de Fevereiro, e eu sabia que os restantes oito contos na conta da Caixa Geral de Depósitos, já mal me restavam até ao final do mês, ora claro que não me dava jeito nenhum aquele quase-assalto. Mil escudos, só mil escudos, mas digita dez contos no teclado e a imagem de o 1 com tanto zero como acompanhamento género batata frita com salada e ovo a cavalo, rasgaram por completo a sofrida e apertada gargalhada acompanhada dum: “Eu não tenho dez contos na conta!” que explode mesmo em cima das crateras que se preparam elas próprias para explodir em lava a ferver mesmo antes do: Mil escudos, só mil escudos, e lá me levanta da triste e solitária conta da Caixa Geral de Depósitos cinco contos. A máquina Multibanco cospe-me o cartão. Viro costas ao monstrinho e caminho finalmente em direcção à estação de São Bento. Anda cá, o que é que queres não tens já o dinheiro, se contas isto a alguém ‘tás feito, não me chateis já terminaste finalmente o teu quase-assalto, feliz noite de São Valentim. E lá fui adiar mais um bocadinho aquilo que seria um ano depois um grande pesadelo, deixando sozinho ao fundo de Sá da Bandeira o monstrinho das cicatrizes, crateras, e manchas desfeitas numa cara em que desfiguravam aqueles não-mais-que-vinte-anos depois da sua conturbado e sofrida imitação de um guião de escalão B, para realizar um quase-assalto, mas de facto muito esforçado. Reconheço-lhe o esforço, e como que um pedido de desculpas por tanta gargalhada mesmo naquela espécie de cara em desconstrução pensei: oh rapaz, fica lá com os cinco mil escudos a ver se comes alguma coisa em condições e arranjas uma cara que se pareça com gente, isto se não fores já a correr injectar aquilo que tanto precisas no braço e explodes duma vez essas crateras todas.

6 comentários:

miguel disse...

muitas vezes o desepero das pessoas lava a situaçoes como esta.. pessoas que se perderam na vida por se terem esquecido delas proprias e aquele "nao-mais-que-20-ano" provavelmente n teve uma vida facil.. e triste ver casos destes !
! mas eles existem..

Denise disse...

LOOL...
O barulho aqui em casa não me permitiu dar a atenção necessária ao teu post, mas não consegui evitar rir-me de tudo o que está escrito.

Situações como esta são tristes, mas nos dias de hoje cada vez mais frequentes. Enfim...Fazer o quê?! É deixá-los.
Desde que não nos façam mal!

Beijinhos*

peter_pina disse...

mas estas duas situaçoes sao mesmo verdadeiras e aconteceram comigo, meninos!!!!

Anónimo disse...

Já há algum tempo que acompanho o que escreves mas nunca tinha comentado porque...bem, porque me deixas sem palavras, logo a mim que tenho sempre um monte de comentários a fazer!

Infelizmente, assaltos não faltam, e pessoas que acabam com uma juventude pela droga também não! Pequenas e grandes cidades, parece que não há um único local onde não nos encontremos com estes "nao-mais-que-20-anos"!

Anónimo disse...

meu querido!..é que eu gosto mesmo das tuas histórias sabes?..e sendo reais; consegues trascreve-las de um modo mto natural e mto próprio.
és sempre tão bonito que até te mordia agora numa bochecha..
e toma lá mtos beijinhos, mtos abraços e amassos my beautiful flawer in the country..
smak!.smak!

Nuno Gonçalo disse...

Detesto as drogas. Acho que é tudo o que consigo dizer. Acho tão mau acabarmos com a nossa vida, levarmos para essa fossa tantas outras pessoas, morremos e matamos. Nem sei bem o que dizer, acho todas as dependências horríveis sejam dependências de álcool, de tabaco, de jogo, de internet, de comida... Tudo.
Tu tens azar quantas vezes já foste assaltado?